Ser


Quando observamos um corpo, imaginamos que ele é e não que ele devém. Fixamos e atribuímos um nome e algumas qualidades a ele (a cadeira é um corpo sólido, é de cor cinza...). Não agimos de maneira diferente quando dividimos os corpos em humanos e não humanos, para, em seguida, fazermos distinções de nome, cor, sexo, raça, nacionalidade, profissão. Dizemos que alguém é Maria, é mulher, é branca, é brasileira, é bióloga. E assim imaginamos que também somos, no fundo, uma realidade fixa. Dessa maneira, reduzimos toda a realidade ao verbo ser: eis o nosso grande vício, a grande armadilha do ressentimento!  Mas não há nada fixo no mundo, nem a cadeira, nem Maria, nem nós mesmos. Assim como acontece com todas as coisas do mundo, não paramos de mudar. É necessário compreendermos que não nos separamos do mundo nem mesmo quando acreditamos que somos isso ou aquilo – nem o mais fervoroso defensor da sua identidade está separado do devir. Mas compreender isso é uma tarefa muito difícil, pois a noção de identidade, que é um sintoma de ressentimento, é reproduzida através de uma violência cada vez maior pelos aparelhos do Estado. Certamente, o maior exemplo dessa violência que domestica as massas são os meios de comunicação. Quanto mais somos informados pelos mass media, cada vez mais sentimos a necessidade de “corrigir” a realidade – em outras palavras: o péssimo hábito de julgar o mundo é intensificado pelos mass media. E isto é perfeitamente compreensível, já que uma quantidade cada vez maior de entretenimento faz aumentar a tagarelice. Mas, mesmo sob o império da besteira, a realidade segue escoando em nós e de nós para o mundo, sem nenhum objetivo a ser alcançado – mas continuamos a querer encobrir tudo isso através da linguagem! Se ainda nos agarramos à mentira do “eu”, continuamos a reprimir os nossos “eus”, isto é, os estranhos que nos habitam... Mas podemos fazer emergir esses estranhos através da arte, por exemplo. A arte nos faz tocar a fluidez do real porque ela suspende o nosso hábito de falar, de querer fixar tudo que muda. Afinal, sentimos a vida quando deixamos de tagarelar. Passamos a ouvir a enorme beleza das vozes do mundo quando acompanhamos o ritmo que escoa da eternidade...

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

mvassi disse…
...talvez, melhor dizendo, QUE ECOA DA ETERNIDADE E NA ETERNIDADE...
Augusto