Descuidar
Quando fazemos alguma tarefa sem ter o cuidado necessário que ela exige, ou então, quando deixamos para que os outros façam aquilo que, mediante uma autodisciplina, poderíamos fazer com perícia, é muito provável que ela resulte num desastre, seja para nós, seja para os outros. Consumado o resultado desastroso, é inútil recorrer ao famigerado artifício da culpa – culpar ainda é um recurso indolente para não se inserir ativamente na materialização de uma tarefa. Queremos dizer com isso que, num certo sentido, por descuidarmos da existência que ganhamos, ela pode se tornar uma penúria, não somente para nós, mas também para os outros. É inútil acusar a si mesmo, ou então, um governante qualquer, como se ele fosse uma entidade sobrenatural, como se ele não tivesse nenhuma conexão com o modo atual de os indivíduos viverem, pensarem, odiarem e amarem. Queremos sublinhar o fato de que o descuido de grande parte dos indivíduos sobre aquilo que eles leem e ouvem resulta do embotamento da sensibilidade deles. Queremos também destacar que é um problema de saúde mental o descuido de si que é característico das pessoas ditas “normais” – entendemos com isso que elas estão adaptadas às exigências tirânicas do macromundo, tais como: acusar, julgar, enganar, reprimir e, se preciso for, matar, sendo tudo isso justificado com a necessidade de pagar as contas... Porém, se o sujeito não quer mais fazer parte do excesso de tarefas que são ditadas por quem ele nem mais sequer suporta ouvir, é apressadamente diagnosticado como “inadaptado” ao seu ambiente: então, aquilo que pode servir como indicação para a importância do cuidado de si, passa a ser considerado uma doença... Entendemos que a prática do descuido de si é, efetivamente, a de deixar de pensar continuamente sobre alguma coisa realmente valiosa, ou seja, é desprezar uma realidade que exige atenção máxima... E se isso que exige atenção máxima é a nossa própria existência, torna-se, por isso, indispensável pensar sobre o que fazemos com ela... Pensar sobre o que fazemos com ela não é considerá-la como se fosse uma “coisa em si”, como se estivesse pronta e imutável; pelo contrário, é considerá-la em constante relação com as coisas que a afetam e a modificam, sejam pessoas, alimentos, bebidas, lugares para estudar, trabalhar e morar. Para sermos mais precisos: não se trata exatamente de “coisas”, mas de movimentos que podem ou não nos atrair, que podem ou não, sem dúvida, enriquecer o nosso corpo e a nossa mente. Afinal, uma coisa e um ser vivo não cessam de nos transmitir movimentos que podem ou não reverberar com o que somos num determinado momento. Portanto, o cuidado de si exige pensarmos sobre aquilo que nos afeta como um transmissor de movimentos e não, como habitualmente é estimulado, como um ser facilmente identificável pela nossa capacidade de dividir imaginariamente a natureza; o cuidado de si também exige pensarmos como esses movimentos estimulam a nossa sensibilidade, como nos fazem mergulhar no tempo, como nos fazem deixar de temermos aquilo que o mais profundo de nós pensa a todo instante... Dito de outro modo: descuidar de si é não pensar sobre como a natureza nos afeta... Por efeito, essa ausência do cultivo do pensamento alimenta a perigosa demanda pela suposta “poção mágica” que não existe em lugar algum... Não pensar em como a mídia fabrica as opiniões moldando a percepção de mundo da maioria das pessoas; não pensar na cumplicidade por fazer parte de interesses perversos de uma instituição criminosa, “lavando as próprias mãos” por apenas querer acreditar que as ordens devem ser executadas; não pensar em como a linguagem social nos convence de que nascemos apenas para reproduzir o que aí está; não pensar que nossa vontade consumista é, antes de tudo, produzida pelos indivíduos estupidificados – tudo isso é, indubitavelmente, sintoma do descuido de si – … – entretanto..., ninguém está destinado a descuidar de si.
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