Vontade


Se a conservação da nossa potência de criar exige a conservação do nosso organismo e, também, da consciência pragmática, torna-se evidente que a vontade de possuirmos tudo aquilo que é indispensável para continuarmos a existir não pode ser desprezada. Se estamos assolados pela falta de alimentos, pela falta d'água, pela falta de moradia, como, então, podemos inventar um modo de viver e, além disso, sermos capazes de fortalecê-lo? É evidente que ao suspendermos a fome e a sede sentimos prazer. Também não é estranho para ninguém o fato de que quando o nosso organismo adoece passamos a sentir dor – e por isso queremos eliminá-la. É a vontade de possuir o que nos dá prazer, e de eliminar o que nos causa dor, que conduz as nossas ações, ao menos enquanto não experimentamos o impulso. Porém, o que não pode se tornar claro para a consciência pragmática é que a vontade é apenas um meio para que a vida possa desabrochar também em nós. Em razão disso, o que a experiência não cessa de demonstrar para nós é que a vontade tornou-se, para a humanidade atual, o sentido mesmo da existência, como suprema finalidade do fato de existirmos – finalidade que é fabricada e estimulada socialmente, todos os dias, como imperativo para “aproveitarmos o dia”, pois, como a nossa existência é breve, devemos aproveitá-la com muitos prazeres. Sabemos que o homem ressentido e hedonista é aquele que implora por um mundo sem dor, porque ele simplesmente não se serve da dor para poder agir, para mudar algo que não flui mais na sua existência. A vontade aparece para a sua consciência associada com o estranho raciocínio de que “o mundo gira ao meu redor!”, e não com a lúcida constatação de que “é a vida em mim que precisa se conservar!”. Enquanto está confinado nos espaços que lhe “protegem”, imagina que estará arruinado se diminuir o seu “padrão de vida”. Entretanto, o homem ressentido e hedonista ainda não se deu conta de que, enquanto está reduzido à sua vontade, necessita de um excesso de bens que não são, de modo algum, indispensáveis – por isso ele necessita de reconhecimento, de olhares que reforçam a sua vaidade, de credenciais que lhe dão a percepção distorcida de que é superior aos outros. Uma vez capturado pela vaidade alegre (aquela que surge do “tapinha nas costas”), é certamente muito difícil abrir mão dos privilégios que foram obtidos com “mérito” – e isso é dito, da mesma forma, do rico e do pobre... Mas o seu corpo não tem apenas vontade de prazeres industrializados, pois todo corpo humano também deseja explorar... Tenha ou não consciência disso... 

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Aforismo publicado no livro Simplicidade Impessoal (2019), de Amauri Ferreira.

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