Consumismo


O alto grau de desenvolvimento tecnológico permite que uma parte considerável da humanidade tenha acesso a inúmeros bens com uma facilidade que era impossível de ser imaginada há séculos. Porém, essa facilidade é acompanhada de uma abundância que permite que o consumo dos bens seja, em muitos casos, extremamente supérfluo. Em regiões onde encontramos uma facilidade para obter alimentos, por exemplo, a abundância alimentar contrasta com a penúria que se observa em outras regiões, o que, no mínimo, demonstra que a humanidade possui todos os meios materiais para eliminar a fome do planeta. Mas o consumo alimentar há muito tempo deixou de apenas servir para a sobrevivência, tornando-se, então, consumismo. O acesso facilitado aos bens alimentares não deixa de ser uma conquista importante da humanidade, assim como o acesso aos bens culturais. Hoje em dia, para ouvirmos música, assistirmos filmes, lermos livros, não é nada difícil encontrá-los, sobretudo pelo fato de a internet permitir o acesso a uma fartura de bens que a humanidade jamais teve. Mas, exatamente neste ponto, surge algo que merece ser observado: a facilidade de acesso fez surgir a vulgarização no modo de consumir os mais diversos bens. Desde que surgiu a possibilidade de ouvir gravações musicais, nunca se consumiu música tão vulgarmente como na época em que vivemos. Podemos também pensar no consumo atual de filmes e livros que encontramos abundantemente na internet – do mesmo modo, no consumo de viagens... Ora, não existe capitalismo sem consumismo, isto é, sem o consumo excessivo de bens em busca de prazeres. Mas a produção dos bens que a humanidade consome excessivamente é, sem dúvida, limitada. Então, torna-se evidente que a relação entre consumismo-destruição ambiental é inegável, e que o capitalismo é, por sua natureza, exterminador – e sua força destrutiva é acelerada na medida em que a sua própria morte se aproxima... Como parte da humanidade tenta reagir à destruição promovida pelo capitalismo? Alguns culpam o desenvolvimento tecnológico que, como é notório, facilitou o acesso a bens que, em grande parte da humanidade, são utilizados de modo supérfluo; outros responsabilizam os consumidores de carne por serem cúmplices da destruição ambiental promovida pelo agronegócio; existem os que acusam os consumidores de automóveis pela poluição da atmosfera; há também os que censuram os consumidores de fabricantes de roupas que escravizam trabalhadores imigrantes. Os exemplos são muitos e, de algum modo, denúncias como essas não são desprezíveis porque, ao menos para nós, funcionam como lentes de aumento para problemas que exigem soluções urgentes. Mas, aqui, queremos trocar estas lentes por uma outra, que nos permite colocar outros problemas. Partimos das seguintes questões: Quem considera o animal, a água, a floresta e o próprio ser humano, basicamente, como fonte de lucro? Quem deseja lucros cada vez maiores para continuar a experimentar prazeres excessivos? E, afinal, quem precisa de prazeres excessivos?... Já fornecemos muitas indicações sobre isso em outros lugares... Quando vivemos por meio da introspecção não precisamos, de fato, de prazeres excessivos, pois a felicidade não apenas refreia a crença na imortalidade, mas também a busca enlouquecida por prazeres. Por isso podemos nos alimentar o suficiente para conservarmos o nosso corpo e, até em razão do grau de desenvolvimento tecnológico que atingimos, as pessoas podem optar, se lhes convêm, a se alimentar basicamente de grãos, sementes, vegetais, frutas e cereais. Também, por isso, podemos nos vestir para protegermos o nosso corpo e não para sermos invejados e admirados. E também, por isso, podemos consumir os bens culturais com sabedoria, não para sermos eruditos ou para nos distrair, mas para continuarmos a ser criadores. Por efeito, a lógica perversa do agronegócio, da indústria automobilística e do entretenimento simplesmente desabam – afinal, muitos poderes desabam quando não somos mais iludidos pela publicidade que fabrica desejos supérfluos. É certo que o prazer nos conserva e, quando é excessivo, nos aprisiona, nos faz negar o futuro da humanidade. Mas a felicidade nos torna mais fortes para não sermos iludidos pela publicidade e, além disso, a certeza alegre, que nos faz perseverar no processo de obrar, nos permite experimentar outras felicidades, nos faz afirmar o futuro da humanidade. É preciso, sim, consumirmos diversos bens para nos conservarmos – mas eles são apenas meios para podermos conservar a nossa potência de criar.

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Aforismo publicado no livro Simplicidade Impessoal (2019), de Amauri Ferreira.

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