Corpo
É um grave equívoco imaginar que ideias bem articuladas inteligentemente são suficientes para dar conta da “explicação” da produção de realidade. O excesso de comunicação e de interpretações sobre a origem e a finalidade disso ou daquilo encobrem os gritos de um corpo violentado. Quando afirmamos que ninguém está destinado à tristeza é porque ela, ao contrário do senso comum, não possui uma origem psicológica – nos parece que a tristeza manifesta um grito do corpo, ou seja, uma indicação de que algo sobre o corpo age de modo contrário à sua tendência essencial. Violentado, o corpo grita e grita, não cessa de gritar. Mas esses gritos não costumam ser ouvidos com atenção. Os gritos do corpo de um bebê ou de uma criança manifestam-se através do choro, porém, é mais frequente explicá-los a partir de uma suposta “criança frágil e doente” que não conseguiu se adaptar a um ambiente que é, pelo que dizem, benéfico para todos. De maneira semelhante também são interpretados os gritos de um corpo adulto – gritos que, de fato, se manifestam psicologicamente como um entristecimento que deve, moralmente falando, ser cada vez mais tolerado. Por outro lado, uma criança que chora e que, ao gritar, apenas permite vazar “gritos corpóreos” (ou então, surta, numa linguagem mais comum), certamente incomoda muito mais do que um adulto carrancudo, dócil, que já está adaptado à organização exterior que violenta o seu corpo. É evidente que ele adapta-se, com muito custo, através da meritocracia e dos venerados medicamentos. Como os gritos do corpo não são escutados, é mais cômodo imaginar que o melhor “remédio” para a crise existencial é simplesmente administrá-la, sem, de fato, solucioná-la. Mas se o corpo for devidamente escutado, nos alertará da ignorância das nossas palavras, da insensatez das nossas medicações – ele também nos alertará do terrível equívoco dos que afirmam que o corpo é apenas a ferramenta de um “eu” que está consciente da sua superioridade diante do corpo. Em palavras platônicas, os gritos do corpo, por serem ouvidos erroneamente, são interpretados como prova da sua “imperfeição”; em palavras cristãs, são interpretados como “pecado”... Porém, é com o corpo que pensamos, que mudamos, que existimos com tristeza ou com alegria, que adoecemos ou que nos curamos. O corpo quer – e pode – muito mais do que apenas se conservar: ele quer ser atraído para outros mundos, que são realmente micromundos, mundos imperceptíveis, mundos que permitem criar o nosso micromundo com novos microamigos, experimentar novos microeus e novos micromodos de amar. Trata-se de um micromundo que, ao contrário do que pode parecer, não se fecha em si, porque a microliberdade experimentada nele é muito melhor do que a macroliberdade de um macromundo fechado em si mesmo, que está entupido de “verdades evidentes”, e que por isso está distante da vida.
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