Multidão


Falávamos sobre a democracia ativa e como ela põe abaixo a ordem vigente da representação política. Agora, queremos destacar a importância da emergência e o fortalecimento de movimentos de multidão apartidários, autônomos, horizontais, sem centro. Alguns intelectuais de esquerda lançaram mão do conceito de “multidão”, no sentido que Negri e Hardt o cunharam, como tentativa para compreender o que ocorreu recentemente nas ruas do Brasil. Não é o caso de desenvolvermos aqui, de modo rigoroso, este importante conceito, mas apenas de nos servirmos dele para sustentarmos algo que sentimos ser, no momento, primordial: a luta diária para que os movimentos sociais não sejam manipulados e influenciados pelas organizações parasitárias e reacionárias que estão em todo lugar. É uma luta, como já dissemos, sobre nós mesmos. Atualmente, o Movimento Passe Livre é de multidão, assim como muitos outros movimentos sociais no país e, por isso, expressam um autêntico desejo por mudança. Para nós, somente a partir desta perspectiva, as manifestações recentes no Brasil foram revigorantes e inspiradoras para o crescimento e o fortalecimento de mobilizações políticas que são feitas no cotidiano. Não queremos negar que, a partir deste acontecimento, surgiram pessoas que, de fato, acordaram, despertaram forças que lhe deram uma nova coragem de lutar. Gente que deixou a história pessoal um pouco de lado e dirigiu-se para questões que vão além do próprio umbigo... Se existe um ódio que se destaca nos movimentos sociais de multidão, certamente não é aquele tipo de ódio que é direcionado pela grande mídia, como o ódio aos “vândalos”, a este ou àquele político, a este ou àquele partido. A invasão de edifícios abandonados por aqueles que não têm onde morar não é, de modo algum, “vandalismo”, ou seja, não é vingança contra os proprietários dos edifícios – é ódio contra a humilhação por viver em condições de grande violência diária. Então, nesse sentido, entendemos que esse sentimento não pode ser desprezado, assim também como o ódio a um transporte público que violenta os corpos. É algo como dizia Estamira: ser ruim na cobrança e não na vingança... É ódio de quem não quer o poder, mas quer incomodar, cutucar e, mais profundamente, subverter a ordem das coisas. Daí a necessidade de mobilizações pontuais, mas também de conexões entre as próprias mobilizações. A multidão “põe a mão na massa”, faz acontecer, luta, não quer ser engessada, não quer ser representada. Desse modo, ela não se torna uma massa de fracos cujo ódio é facilmente dirigido pelas promessas do poder. Por isso que o fortalecimento e o crescimento dos movimentos sociais de multidão vão perturbar e pressionar ainda mais os políticos. O combate entre movimentos de potência que tendem a operar uma mudança profunda e as instituições de poder que não querem sofrer uma influência tão grande vai, ao que nos parece, se acentuar. E contra as manifestações puras de desejo, o Estado vai continuar a usar suas armas de sempre: a violência policial explícita para conter os movimentos (vimos recentemente que esta opção é, atualmente, impopular), ou enfraquecê-los ao absorvê-los (algo que os homens do poder sabem fazer muito bem).

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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