Desabrochar
São
raros os momentos em que somos atingidos subitamente por um
pensamento novo, uma espécie de visão no interior da vida.
Muitos passam por toda a existência sem ter essa visão e se,
afortunadamente, chegam a ter um vestígio dela, não conseguem
materializá-la numa obra. É como se alguém tivesse sucumbido
diante do árduo trabalho de produzir aquilo que não vai “garantir
o seu pão”. É necessário alcançar uma sagrada modéstia para
poder dizer que a nossa existência
é uma tentativa da vida para desabrochar e se alegrar consigo mesma.
Ela, a vida, sempre tenta desabrochar através de nós,
assim como tenta em qualquer outro lugar no universo. Sua tentativa
não tem fim, pois sua essência mesma é essa, tentar
desabrochar. A vida tenta e erra, tenta e erra, tenta e erra...
até que, finalmente, acerta, desabrocha. É tão difícil
desabrochar em alguém que, quando isso acontece, é como se um
acerto valesse por um milhão de erros. O que queremos dizer é que
os problemas que atormentam a existência do homem tagarela e
perturbado estão relacionados apenas à conservação da sua
existência orgânica, por isso tais problemas não chegam nem perto
dos que surgem em quem é tomado por uma visão original no interior
da vida: se a vida tenta acertar através de nós, é em quem é
tomado por essa visão que ela está mais próxima disso. Portanto,
levar adiante essa tentativa até o fim é, sem dúvida, a grande
tarefa. Concluída a tarefa, pode-se cair no chão e nunca mais abrir
os olhos, nunca mais respirar, o organismo ser desfeito por completo
– mas a soberania da vida segue imaculada, como sempre foi e será,
pois ela desabrochou. É por isso que dizemos que toda existência
está completamente justificada quando, com muito árduo, alguém
consegue fazer a vida desabrochar – faz isso por amor, faz porque
não teme os obstáculos, faz porque não conhece outro sentido para
respirar, comer e beber a não ser este. Basta sermos tocados pela
obra de um grande músico ou um grande escritor para percebermos que
ali, naquela simples existência que é um ponto no universo, a vida
acertou e, por isso, a obra nos toca tão profundamente – e se nos
toca, é porque temos esse anseio inconsciente de permitir que a vida
também desabroche em nós... Entendemos que um único acerto
justifica o nosso nascimento, mas, evidentemente, queremos mais...
queremos criar, criar, criar, até o
nosso último respiro. É a certeza alegre que sentimos
por fazermos parte ativa desse processo cosmológico que nos leva a
abraçar com orgulho a grande tarefa.
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