Autogestão


Ao que nos parece, na época em que vivemos é possível, cada vez mais, fazer o nosso próprio trabalho, ou seja, aquilo que mais amamos, sem precisar das “ajudas” legítimas e oficiais oriundas do Estado, de Ongs ou de empresas privadas. Há pouco tempo, quem se atrevia a ter uma relação tão honesta e profunda com o próprio trabalho, dificilmente conseguia se manter financeiramente sem permitir que o seu trabalho fosse anexado às exigências econômicas vigentes. Desse modo, corria-se o risco do resultado do próprio trabalho ser praticamente desconhecido, pelo fato do autor se recusar a fazer concessões aos meios oficiais de divulgação. Muitos morderam e continuam a morder a isca da lógica do mercado para a divulgação da própria obra – não raro, o trabalho que, inicialmente, tinha um quê de honestidade, e até uma certa inocência, passa a se tornar terrivelmente burocrático, associado com prazos, metas e lucros. O trabalho passa a ser engolido pela lógica do mercado porque se desejava, ao menos no início, divulgar o seu resultado, tocar as pessoas, fazê-las pensar e agir de outro modo. Mas, seduzidos pelo dinheiro a mais na conta bancária, as concessões se multiplicam. Porém, vivemos numa época em que a apropriação da novas tecnologias possibilita a difusão de uma obra imaculada, pois o próprio trabalho é feito com paixão, dedicação, compromisso com o futuro. Quem souber se servir disso estará realizando, sem dúvida, uma revolução silenciosa, que não se assemelha em nada com a “revolução pela guilhotina” ou com a posse do poder. Quem for capaz de inventar o seu próprio bem terá o seu público, desde que faça a apropriação adequada para disseminar a sua obra. Se alguém tem uma relação honesta com o que faz (diríamos, até, uma relação impessoal, por introspecção), certamente não terá preocupações em tornar-se rico. Ora, a promessa de riqueza é justamente a grande sedução que captura um trabalho inicialmente vivo. Se havia gente que não podia desenvolver o trabalho do seu jeito, agora poderá fazê-lo, sem precisar “vender a alma ao diabo”. Quem faz isso se alegra consigo mesmo – alegria que, por ser autêntica, pode despertar outros desejos distintos dos que são reproduzidos pela publicidade. É um contágio pela alegria. Quem se liga afetivamente com o resultado de um trabalho assim são os que se fortalecem com a obra, que são movidos para outros lugares, convidados a pensarem por si mesmos e, como contrapartida (e não por altruísmo), ajudam a financiar o trabalho de quem lhes doou algo. Já dissemos, em outro lugar, que não há revolução que ignore as relações afetivas entre as pessoas... Mas para a sagrada autogestão do seu próprio trabalho é necessário, antes, conquistar a autonomia, isto é, inventar o seu próprio bem que irá conduzir o seu trabalho. E isso envolve um milhão de coisas... Daí a necessidade, então, de um ensino direcionado para a autonomia, pois, caso contrário, será mais difícil abandonar o uso estúpido das novas tecnologias e a postura, ainda passiva, de pedir esmola ao Estado, às Ongs ou às empresas privadas. O argumento de que o problema é o uso do dinheiro, mesmo quando este é oriundo do Estado ou de empresas, ainda tem, em certos casos, uma justificativa nobre: nos casos em que a obra apenas é possível por meio de patrocínios, por exemplo. O cinema é um caso emblemático disso. Usar o dinheiro de uma instituição bancária para permitir o nascimento de uma obra que faz passar um fluxo revolucionário, que põe em questão inclusive os valores vigentes que permitem a existência de instituições nocivas (como os bancos), não deixa de ser, até certo ponto, louvável. Mas isso ainda nos afasta do que já dissemos: a urgência da invenção de um outro ensino, que não está direcionado para a falta, mas sim para a autonomia. Quem sente que tem algo de urgente para ensinar, que ensine, ou seja, que invente os meios para isso – por isso, autonomia. Quem quer fazer uma intervenção urbana, que faça, sem precisar esperar e rezar pela contemplação oriunda das “leis de incentivo à cultura” – por isso, autonomia. Ocupar os espaços, apropriar-se das novas tecnologias, estabelecer alianças, fazer as pessoas pensarem, isso não tem nada de errado – por isso, autonomia. Um coletivo de anônimos, mas também um coletivo autônomo, de quem não quer ser celebridade. Um escritor pode publicar o seu livro, que foi feito com o seu coração, financiado pelos seus próprios leitores que, de bom grado, fazem isso. Tudo passa pela organização e pelo afeto. As relações afetivas na ordem da aliança fazem as coisas acontecerem, materializam as obras que podem levar os homens a irem mais adiante, ao contrário do que geralmente ocorre no atual mercado mundial de livros, por exemplo, onde a disseminação do lixo dos autores banais é a norma. E o mesmo poderíamos dizer sobre muitas outras atividades, onde a disseminação do lixo parece não ter fim. O que queremos destacar é o momento em que vivemos, onde as relações com o trabalho estão no início, ao que nos parece, de uma profunda mudança, e que a postura de pedir esmola, em muitos casos, já teve o seu tempo. Quem for capaz de conquistar a autonomia (algo muito difícil, pois demanda tempo, paciência, autodisciplina, estudos), fará da autogestão do seu trabalho, e das relações afetivas de aliança, um combate para acelerar uma mudança radical no atual sentido com o trabalho, mas também com as relações humanas, com o sistema econômico e, enfim, com a sociedade. Por isso que esses indivíduos autônomos, que podem constituir um coletivo de anônimos, estarão adiante no movimento das mais urgentes e inevitáveis mudanças sociais que a maioria dos homens ainda continua a ignorar (incluindo, certamente, as celebridades que também estão submetidas a uma obsoleta e perversa lógica de mercado que aprisiona a invenção de um outro sentido para o trabalho).    

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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