Excesso


Apontamos o que seria a crise relacionada ao corpo reduzido ao hábito: o esgotamento e o embotamento dos sentidos são sintomas dessa crise. Não é novidade que o capitalismo nunca se opôs à crise ao fazer dela um problema para ser administrado, e não solucionado. Se os corpos confinados da sociedade disciplinar foram, num certo sentido, flexibilizados nas suas relações pela sociedade de controle, é evidente que essa composição entre disciplina-controle jamais resolveu a crise que assola os indivíduos. Percebemos que vivemos, de modo acentuado nos grandes centros urbanos, numa sociedade de excesso – excesso de estímulos que nos atingem (principalmente pelo uso estúpido das novas tecnologias), cuja quantidade e velocidade não acelera a produção de intensidades, mas, ao contrário, acelera a quase ausência de intensidades e seu correspondente imediato, que é a demanda cada vez maior por pequenas doses de prazer. Um pequeno prazer associado a um estímulo visual, por exemplo: a obtenção é cada vez mais facilitada, “democratizada”, todos têm direito ao prazer (afinal, diante da oferta por prazeres, por que ficar triste?). Como tudo acaba, surge uma angústia que é suspensa temporariamente de modo fácil, simples: basta estar conectado e “clicar”. “Conectados vivemos melhor”: este slogan, vindo de uma grande empresa de telecomunicações, nos leva a suspeitar daquilo que dizem ser “melhor” para nós... Na sociedade de excesso, o déficit de prazer não é o seu oposto. Mas, ao que nos parece, o excesso, ao invés de ser a carta na manga que o capitalismo lançou mão para administrar a crise que surge pela redução dos corpos ao hábito (mesmo quando os hábitos são substituídos por outros que são impostos de fora), pode conduzir os corpos esgotados ao extremo da crise – um esgotamento que talvez não seja mais possível de ser administrado. Portanto, a relação entre excesso-déficit pode, enfim, tornar-se fecunda porque essa crise não é mais disfarçada pela indústria do prazer efêmero e aí, neste ponto, as coisas começam a ficar realmente sérias do ponto de vista dos defensores de uma suposta “saúde”, “bem-estar”, “tranquilidade” e “equilíbrio” para os indivíduos esgotados – uma crise assim pode ameaçar seriamente a reprodução da matéria humana que é necessária para a manutenção do sistema econômico vigente.  

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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