Filosofia
Há os
que dizem que a filosofia é para a velhice, quando determinadas necessidades se encontram “resolvidas”, quando se possui, finalmente, ócio
suficiente para se aventurar no mundo das ideias. Isso significa que,
segundo esse raciocínio, é cedo para filosofar quando somos jovens, porque
devemos nos preocupar primeiro em ganhar dinheiro com o nosso trabalho para
conseguirmos pagar as contas, e nos esforçarmos em preencher o currículo, não poucas
vezes, com cursos que atendem às atuais exigências econômicas. Imaginemos a seguinte situação: o tempo
passa e, mais tarde, o sujeito pode ter contato com pensamentos
filosóficos, mas desta vez com uma atenção um pouco maior, já que ele finalmente possui tempo para a filosofia. Sua condição financeira, agora sim, permite isso. Ao começar a aventurar-se pelo pensamento, não é incomum ele dizer para
si mesmo: “se eu soubesse disso antes, minha vida seria outra...
mas agora é impossível mudar, tudo está feito”. Depois desta
leviana constatação, ele abandona a filosofia, porque imagina que é tarde
para aprender a pensar. Mas quando jovem, deixou a
filosofia de lado porque tinha coisas mais úteis para aprender, que lhe ajudaram a ter uma boa condição financeira. Se esse sujeito não
aprendeu a pensar quando era jovem, isso não mudou muito na velhice. Este raciocínio, que não faz mais do que reproduzir os que ignoram a potência de pensar, é uma ofensa às célebres palavras de Epicuro, que dizia, na sua carta a Meneceu: “Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz”. A filosofia fornecida em pílulas, como autoajuda, algo tão em voga ultimamente, é, ao que nos parece, mais um dispositivo contra a liberdade de pensar. Não se compreende o pensamento de um filósofo em pouco tempo, nem adaptado a circunstâncias que exigem, na verdade, uma experiência de tempo e de pensamentos próprios - ao contrário, portanto, do
“ler-e-aplicar”, sem ruminação, que é tão estimulado. E os que estudam filosofia nas universidades, não
seria exatamente aí uma ponta de esperança para que as pessoas fujam desses
dispositivos? É raro que o ensino universitário de filosofia
forme os que aprendem a pensar por si mesmos. Há um desfile
universitário de professores agarrados a títulos e reconhecimento; muitos dos que se tornam especialistas num determinado pensador ficam
encostados nas suas ideias e vivem do prestígio que decorre disso durante décadas. Mas não refutamos os especialistas na filosofia. Mesmo que
seja raro que o conhecimento transmitido por algum deles toque
profundamente um espírito potencialmente criador e ousado,
não deixa de ser louvável quando isso acontece, pois a humanidade só tem a ganhar. Os especialistas, bem utilizados, são importantes para o surgimento dos criadores. Mas devemos nos
proteger de alguns dos seus vícios, entre eles o pedantismo, o modo
mecânico de viver, a ausência de solidão e a quase incurável
vaidade – eles enterrariam esses vícios se, justamente,
fossem criadores... Mas deixemos esses detalhes de lado, porque o que nos
interessa aqui é o vínculo, com a prudência necessária, entre os
especialistas e os criadores, o que, para nós, deve ser intensificado. Obviamente, não queremos limitar os criadores no âmbito da filosofia, isto
é, aqueles que criaram a sua própria obra filosófica, mas nos referimos a todos
os que se alimentam da filosofia sem deixar de operar alguma
ruptura no seu modo de existir, e passam a viver como criadores de si
mesmos, sejam como músicos, poetas, alfaiates, cozinheiros, pois o melhor modo de agradecermos alguém que nos ensinou algo valioso é sermos criadores. A filosofia
ensinada assim, oferecida assim, não tem nada de entediante, não se assemelha a um
“monstro” que é amansado somente por “seres privilegiados”, exageradamente sisudos,
confinados entre os muros acadêmicos, que cultivam o seu círculo de
bajuladores. A filosofia não é somente para a velhice, não é para os “que não tem o que fazer da vida”, não é distração, não é autoajuda, não serve para a instrução. Ela é para qualquer um que desconfia que as coisas não são do jeito que dizem, que alguma coisa nova tem que vir ao mundo, que não acredita que o mundo tenha que se reduzir aos clichês. “Se não houvesse filosofia”, já dizia Deleuze, “não questionaríamos o nível da besteira. A filosofia impede que a besteira seja tão grande”. São palavras de quem não foi assassinado pelo ensino acadêmico da história da filosofia, de quem não se tornou um operário do pensamento. “A história da filosofia exerce em filosofia uma função repressora evidente” – eis a lúcida constatação de Deleuze. É comum os homens imaginarem que apenas é possível
pensar por si próprio quando se obtém, com muito custo, títulos
que os autorizam a “pensar”. Mas a filosofia se liberta da
repressão contra a liberdade de pensar (que é a repressão para que cada um não crie os seus próprios métodos para pensar) quando ela está na vida,
quando ela serve à vida, quando ela não sai da vida, quando o filósofo vive o
que ensina, pois desse modo ele é amigo da vida – a filosofia aparece, finalmente, com alegria, com cores, com vibração e maravilhosamente subversiva.
Comentários
É fascinante como você consegue nos levar a pensar na filosofia como algo leve e fundamental, que a filosofia não é uma tarefa a ser decorada e infundida, mas o instrumento que nos leva à criação de uma maneira amiga de viver.
Isso é liberdade!
Abraços,
Manoela