Escravidão


Não existe exercício da liberdade sem alguma autodisciplina, esforço, treino, paciência. Portanto, para viver livremente é necessário adquirir um certo costume  (o costume dos criadores), que é distinto do costume da moral dominante. A escravidão é sinônimo de indolência, de passividade, de ausência de si – e que não está necessariamente relacionada a um trabalho que apenas é exercido em razão da necessidade de obter-se um salário para sobreviver. O fato de ser funcionário de uma instituição não é suficiente para determinar a escravidão de alguém. Se é escravo quando se deseja a escravidão como único meio para ocupar o seu tempo, porque não se sabe o que fazer com a capacidade de exercer a sua própria liberdade. Dito de outro modo: escravo é aquele que deseja ter a sua existência organizada do exterior, não somente como organização que está diretamente relacionada à extração de um trabalho útil à perpetuação capitalista, mas também como organização do seu tempo, dos seus afetos, do seu pensamento, das suas distrações, das suas relações com o corpo. E como as novas tecnologias, pelo seu uso vulgar, reforçam isso tudo, é notório que o seu consumo compulsivo tenha a função de entorpecer.  Desejar ser disciplinado pelo exterior, vampirizado, com a finalidade de obter pequenos prazeres e alívios momentâneos – pela lógica do escravo, isto é muito melhor do que a angustiante sensação de não ter o que fazer com o seu dia ou, até, com a sua própria existência. É por isso que os estímulos sociais que demandam respostas rápidas, eficientes, sem espessura de tempo (“o tempo passa rápido”), são desejados por eles. Evidentemente, são raros os que conseguem exercer a sua liberdade, sendo assalariados ou não, pois é escravo também aquele que, mesmo sem receber um salário, continua a viver de modo exterior a si mesmo. Sem dúvida, exercer uma atividade doentia torna mais difícil – mas não impossível – o exercício da liberdade. Porém, não é menos escravo quem está, supostamente, mais próximo de exercer a sua liberdade por estar livre da atividade assalariada, do trabalho maquinal. O que mais acontece é que muitos indivíduos assim desejam voltar a ser vampirizados para sentirem-se úteis... A escravidão, portanto, não está relacionada ao aspecto social e econômico, mas à contínua negação da capacidade de exercer a nossa liberdade de obrar. 

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

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