Imprevisível
Se pensarmos no que leva os homens a desejarem a repressão, isto é, a fazerem aquilo que sentem como uma violência sobre si mesmos, sem cultivar um amor pela obra, resignando-se com a ausência de tempo e de pensamentos próprios, compreendemos que não se trata de rotulá-los como vítimas ou culpados por seus infortúnios. Mas também quando dizemos que a repressão é uma produção social, como uma constatação de que se os homens fazem aquilo que, no fundo, não gostariam de fazer, é porque não houve outra opção melhor para eles (por simples necessidade de sobrevivência), não nos faz ainda compreendermos o que move o desejo por repressão. Talvez tenhamos que dirigir a nossa crítica ao modelo familiar da sociedade capitalista, onde a criança é, de acordo com esse modelo, educada para ter direito a um futuro na sociedade, pois as peças que constituem a máquina de reprodução do capital começam a ser formadas na família. A criança que tem um impedimento das suas experimentações com o corpo passa a ser, gradualmente, introduzida numa ordem muito comum da vida dos adultos: horários rígidos para os estudos, para a diversão, para as refeições, além da exigência de determinados comportamentos, tarefas, espaços de confinamento ocupados por ela. Sua obediência é recompensada com elogios e com presentes e, como sua potência é reprimida num ambiente rígido, não podemos estranhar o fato de que a repressão seja considerada por ela como algo “natural”, desde que se tenha sempre alguma recompensa por agir do modo que a família espera. Essa suposta “naturalidade” da repressão pode se seguir durante a sua existência: na escola, por exemplo, pode se esforçar para se comportar da maneira que a instituição deseja, mesmo se o que ela presencia na sala de aula é, em grande parte, inútil para sua vida no presente. Seus pensamentos e desejos estão em outros lugares coloridos, leves, lúdicos, porque eles têm mais sentido para a sua vida atual. Porém, desde cedo, na família, boa parte dos seus sonhos foi recalcada em razão do seu futuro que, embora incerto, não deixa de ser um objetivo que será mais facilmente alcançado quando ela renuncia aos seus sonhos ditos “imbecis” e “inúteis”. Se, mais tarde, supostamente este indivíduo “chega lá”, alcança o objetivo, isso não lhe deixa menos perturbado. De fato, nunca alguém “chega lá”, porque o futuro prometido é uma quimera, um embuste, pois não há conclusão de nada, tudo no mundo flui. Ao contrário daquilo que muitos gostariam que fosse, o nosso futuro é imprevisível... O que flui, o que vive, isto é, o que é real, é reprimido continuamente no capitalismo, seja na infância, na escola ou no exercício de uma profissão que é apenas tolerada, certamente com conflitos... e continua a ser tolerada apenas enquanto o homem continua a se servir dos benefícios que provém do exercício de uma atividade que, em si mesma, já não lhe tem o menor sentido. A consciência de que a contínua repressão dos seus mais profundos desejos, sonhos e pensamentos foi necessária para que uma vida normal e bem-sucedida pudesse ser alcançada pode surgir em alguém, de modo imprevisível, como um engodo. Finalmente, um breve momento de lucidez... Ou ele olha para trás, para o seu passado, e vai buscar algum culpado, um responsável por seu infortúnio (muitas vezes ele mesmo se considera o culpado por suas “escolhas erradas”), ou, então, retoma o que foi violentamente interrompido e – por que não? – passa a dar vazão aos seus sonhos e desejos. Assim como uma criança, não há mais vergonha de se expressar por meio de um poema, de uma música, de uma aula ou, para falar de modo mais profundo, por meio de algo que é feito com o coração – e isso vale para qualquer coisa que é feita quando sentimos a sua originalidade... ela vem de dentro, ela vem de nós mesmos. A não retomada do que foi reprimido faz o indivíduo carregar um, dois, três, muitos pedaços do seu passado, com um peso que pode chegar ao insuportável: pedaços que surgem como escolhas infelizes e prejuízos causados pelos outros (sejam eles familiares, amigos, cônjuges). Já não há mais futuro prometido, e a estrada adiante parece se dirigir rumo ao abismo, ao nada... A retomada do que foi interrompido, ao contrário, produz o futuro que lhe interessa, mas sem imagem, porque é tecido conforme os seus imprevisíveis encontros. Isto ocorre porque não é mais um vaidoso “eu” que está refém do passado e submetido a uma imagem de futuro (mesmo que o futuro seja o nada), mas sim a um incansável “tornar-se”... O imprevisível – e que também podemos chamar de acaso – é a abertura máxima para não padecermos do nosso próprio passado e da nossa estúpida vaidade.
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Abraço com carinho
da Eliana