Inclusão
A
divisão do mundo em duas realidades, a teórica e a
prática, enquanto estão sustentadas por uma moral, por
uma irresistível vontade de corrigir os homens,
torna-se nociva porque a insubordinação à verdade é julgada como
“minoria”, “deficiência”, “corrupção”. As tentativas
de converter o que é diferente, o que é julgado como falso, a
um princípio de verdade, de superioridade, atravessam a
história da humanidade há séculos: potências como a filosofia, a
arte, a ciência e a religião aparecem enredadas na antiga noção
do Bem universal. A posse da verdade, que se acredita como princípio
do mundo sensível, justifica a necessidade de impor aos homens
certos hábitos, modos de perceber e de desejar, que atendem a
interesses que são inerentes ao ressentimento: mesmo que se diga que
há “neutralidade” ou “desinteresse” na imposição de uma
verdade, o que se pretende com isso é apaziguar aquilo que é
julgado como causa do “mal”, ou seja, aquilo que faz o caos
emergir. Através da “comprovação científica”, o homem do
ressentimento acredita ser mais cômodo e mais justo para ele (e para
a sociedade) aplicar uma teoria que serve para interpretar as
manifestações mais estranhas da vida – desse modo, ao amarrar a
diferença, age de acordo com um saber acessado pelas muitas horas de
estudos e de pesquisas durante a sua formação acadêmica (nesse
sentido, o conhecimento passa a se confundir com o acesso a uma
verdade). O seu sentimento de superioridade e o orgulho da sua
“sabedoria” torna-o fascista, que ama exercer a sua autoridade. O
grande golpe do poder consiste em fazer com que os homens acreditem
que a verdade é o princípio, como se ela sempre existisse e que
poucos (geralmente os que são formados pelas universidades de maior
prestígio) podem acessá-la. Mas a vida escapa, segue escapando e
sempre escapará das seguidas tentativas de docilizá-la por parte
dos que aplicam um saber em nome do “bem comum”. Os homens de bem
– e sua pretensão de neurotizar todos – pensam de modo
semelhante ao que diz Elisabeth Roudinesco: “A psicanálise
funciona muito bem. Entretanto, é verdade que não curamos bem a
psicose, embora tenhamos nos desenvolvido muito nesse tema também.
Os loucos hoje buscam na psicanálise um complemento, já que os
psiquiatras só querem saber de medicamentos”. Essa vontade de
inclusão, de igualdade a partir de um modelo que é imposto por ser
o “melhor” para todos, tem, para nós, duas faces: uma manifesta
e outra latente. A que se manisfesta é o desespero para eliminar o
que escapa do modelo. Por isso a necessidade de incluir para
excluir: por mais que os discursos sejam de “inclusão da
diferença”, a diferença que é incluída é sempre a da
representação (diferenças de raça, de classe social, de sexo, de
mobilidade física, etc.). Desse modo, a inclusão das supostas
“diferenças” pretende impedir que a diferença real se expresse
através da criação de maneiras de aprender, de trabalhar, de
escrever, de falar, enfim, de se relacionar com o mundo sem
referência exterior à vida, sem estar amarrado a um modelo de
educação, de trabalho, de família, de consumo. Quem reage a essa
imposição é marginalizado pelo sistema ou se adapta àquilo que
não foi inventado por ele, mas imposto do exterior (na educação
atual, o mais nítido exemplo dessa adaptação violenta é o
fenômeno Ritalina, “a droga da obediência”). Já a outra face,
latente, é quando se transmuta as políticas de inclusão em algo
que faz a vida passar, fugir, tecer conexões que rompem com aquilo
que a moral da igualdade mais teme. O feitiço, então, volta-se
contra o próprio feiticeiro. Nos parece que, de todas as políticas
de inclusão (é possível fazer um uso potencializador de muitas
delas), a digital é, nesse sentido, a mais interessante. O
Wikileaks, por exemplo, nos mostra que o desejo jamais estará
destinado a estagnar-se: contra isso ele reage, escapa, flui, produz
realidade. A alternativa à marginalidade e à adaptação é,
portanto, criada através de um coletivo desejante de anônimos,
maravilhosamente anônimos, que, ao se expandir, obriga a humanidade
a agir e, talvez, até a romper a casca que a sufoca.
* Clique
aqui para ler a entrevista completa de Roudinesco.
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