Conservação


Um mal-entendido ocorre quando alguém imagina que, por receber um salário, por viver com a função de “tarefeiro”, por cumprir as ordens que mais detesta por medo de perder o seu emprego, estará se conservando... As coisas desagradáveis são atenuadas pela sensação de conservação do seu “poder de compra” ou de “consumo” - consumo de lazer, de tudo que serve para aliviar o cansaço e a dor de realizar um trabalho sem sentido algum. O mandamento "Antes a conservação do que o risco!" está impregnado por toda a sociedade - até em reuniões sobre as alterações no clima vemos os chefes de Estado se esforçando para conservar o atual sistema econômico. Mas como conservar um sistema capitalista que desconhece os limites do planeta? - eis um problema que cada vez mais demanda esforços dos defensores do capitalismo. Distraídos pela ameaça da ruína daquilo que reforça a sua conservação, o verdadeiro problema nem é colocado pela sociedade, porque simplesmente não interessa aos chefes de Estado, aos empresários, aos trabalhadores, aos consumidores - onde todos são peças de uma máquina de destruição ambiental, social e... deles mesmos! A vontade de se conservar ainda fala mais alto. Mas essa é uma falsa concepção do que podemos chamar de conservação. Uma outra conservação deve ser desejada: conservar a nossa natureza de operar modificações em nós, no ambiente, no social, no mundo, de expressar o nosso desejo de outro jeito. Apesar do imperativo social ao conformismo, é necessário conservar o anseio de vivermos de outra maneira. É necessário conservar a chama que nos mostra onde há vida ao nosso redor, mesmo que isso ponha em risco a conservação dos ideais dos que estão entediados do seu cotidiano: talvez, um dia, alguns desses que abriram mão da luta para se venderem por umas migalhas, agradecerão à chama que lhes fez despertar o desejo por uma outra conservação - a da potência singular de ser senhor do seu próprio destino...

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Kely disse…
Muito bom texto, com certeza conservar um estado de catatonia e de falsa satisfação é abortar todo o potencial de impostação e acontecimento do desejo, de criação e exercício do realmente vivo. Um abraço. Kely