Criação
Contra
todo dever ser, contra todo modelo de perfeição, o sentimento de
felicidade é a nossa maior arma no combate ao esmagamento contínuo
da vida humana. Criar é uma resistência à submissão, e a
felicidade que provém do ato criativo passa a nos guiar cada vez
mais, já que através dela podemos avaliar as nossas atividades
cotidianas sempre do ponto de vista do favorecimento ou do obstáculo
à fruição da vida. Como o criador é movido por um desejo contínuo
de distribuir os seus filhos ao mundo, é inevitável que, ao
perceber que está muito próximo da morte, tenha como a única
preocupação não a morte mesma, mas sim ter a certeza de que tudo o que foi possível criar foi
efetivamente distribuído ao mundo. Por isso que o pensamento da
morte, quando nele surge, funciona apenas como mais um estímulo para
tornar-se cada vez mais fecundo e para não desviar-se do seu
caminho. Há, nele, um conhecimento de que tudo continua e que as
coisas permanecem sempre de modo diferente... e a sua felicidade
corresponde a uma certeza de que a roda gira desde sempre: esteja com
vinte, quarenta ou oitenta anos, o criador não conhece cansaço
porque não para de beber da fonte onde jorra toda a matéria para o
novo. Um músico transporta para a música as experiências que ele
viveu – assim também faz o escritor ou todo aquele que cria. Mas
quem cria é quem está aberto às novas experiências - e por isso
as suas obras podem exprimir cada sentimento vivido. Como cada gesto
nosso é um acontecimento absolutamente inédito no universo, o
criador faz de sua obra um estimulante para que os outros também
participem ativamente da criação do universo... Uma humanidade que
não cria, não pode resistir por muito mais tempo ao seu próprio
cansaço.
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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.
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