Sentidos
Quando
escutamos uma música, percebemos que há
um mundo envolvido
na maneira de frui-la: o conforto da poltrona onde sentamos, a
ausência de ruído na sala, a necessidade de fecharmos os olhos, as
lembranças que emergem juntamente com os movimentos musicais, os
braços que balançam, as eventuais lágrimas que escorrem, em suma,
um estranho que
nos habita revela-se para a nossa consciência – a experiência
musical, por não limitar-se à audição, é, antes de tudo, uma
grande aliança entre os nossos sentidos. Mas uma poltrona
desconfortável, um ruído na sala, os olhos que se abrem,
interrompem bruscamente o mergulho cada vez mais profundo em nossas
lembranças: então, a experiência torna-se radicalmente diferente,
apesar da música ser a “mesma”. Experiências singulares,
acontecimentos: isso ocorre com todas as coisas que nos relacionamos,
mesmo quando não nos atentamos à múltipla riqueza de um mesmo
objeto, pois, afinal, o
nosso corpo sempre deseja outros corpos,
pois ele é renovado por cada elemento da natureza que exprime uma
riqueza própria. Os nossos sentidos deleitam-se com a imensidão de
um novo mundo que abre-se para eles. Assim ocorre quando ouvimos uma
voz sussurrada bem próxima ao nosso ouvido, com um tom tão
delicado, que nos faz perceber que ela expressa um enorme cuidado de
não afastar a presença do silêncio – afinal, as palavras
sussurradas e o nosso pensamento se entendem muito bem com o
silêncio... Quando
menosprezamos o corpo, cometemos o nosso maior erro: como não
mudamos a nossa vida, não podemos mudar a vida de alguém... Devemos
amar o
que se passa em
cada sentido para compreendermos que não somos apenas um, mas
muitos. Isso é
uma relação de amor para com o mundo. É impossível que cada
toque, olhar, cheiro, som, sabor, seja uma experiência igual a
outra. Afinal, cada sensação tem o seu ineditismo, e viver é
alimentar-se a todo momento das diferenças, do inesgotável.
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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.
Comentários
amigo ler-te é como ouvir-te sussurrar,macio, muito macio, abraços de admiração.
tua grata virgínia