Depressão
O
maior valor da depressão é que ela expõe a necessidade de uma
grande mudança no percurso de uma vida. Mudança mesmo, ruptura.
Somos honestos com nós mesmos quando não desejamos mais o engodo
das distrações enlatadas, porque percebemos que elas não servem
para darem conta de uma dor crescente, sufocante, uma sensação do
nada, do vazio, de um “para quê a existência?” que insiste em
cutucar nas horas do café, do trabalho, no cotidiano que foi
banalizado, tornado insosso, enfadonho – o mundo, as pessoas,
a história pessoal parecem ser erros, embustes que
bloqueiam alguma coisa que sentimos ser realmente maior, que é
verdadeiramente nossa, porém ainda sem força suficiente
para vir à tona e mudar um percurso que parece não ter mais saída
alguma. No mínimo o deprimido expõe à sociedade o
erro da conservação das obrigações que apenas reproduzem seres
resignados com as migalhas distribuídas por quem precisa farejar a
impotência alheia para extrair vantagens – desse modo, cada
sofredor entrega a sua própria vida aos tubarões famintos. Mas,
para os tubarões, a depressão pode ser uma séria ameaça à
permanência das suas leis. Os moralistas agem rápido quando querem
impedir que alguém se afunde na tristeza, e por isso recorrem ao seu
método mais usual para “corrigir” o comportamento de todos que
ousam desviar-se do “bom” caminho: o julgamento. Eles
dizem, com o tom de uma “inteligência suprema”, que o deprimido
só pode ser doente ou louco. Mas, comparado com esses funcionários
de reprodução dos valores de uma moral utilitária, o deprimido
está muito mais vivo, muito mais próximo de um
autêntico renascimento. A depressão pode nos ensinar que o abandono
do que nos esmaga é a condição para respirarmos um ar
absolutamente renovado, de modo que, ao virarmos para trás, olhamos
para tudo que se desprendeu de nós, tudo aquilo que
foi maravilhosamente desprezado (todo sentimento de
dever, de culpa, entre outras prisões), e nos alegramos pela
passagem, pela conquista da autonomia, do querer, do nosso
querer, curados de todas as doenças que uma sociedade fraca quer
nos contaminar e, por isso, vibramos em cada músculo, em cada
pensamento – e assim seguimos
adiante, mas reinventados. Certamente,
isso não é um processo simples e rápido, pois envolve muita
paciência, disfarce, aliança, querer, sobretudo um querer que a
vida passe mais intensa, de outro jeito, do nosso jeito.
Mas antes que tudo isso seja, de fato,
experimentado, o nosso maior perigo são as muitas opções
oferecidas para uma fuga cada vez mais rápida da depressão: “nada
de tristeza, isso é coisa de preguiçoso!”, gritam os
catequizadores. “O reino de Deus”, a “alma gêmea”, a
“profissão ideal”: tais opções reforçam o conformismo, e
vemos, desse modo, “o mundinho encantado” ser novamente objeto de
crença... e a ação passa a ser adiada, mais uma
vez – o que, com certeza, faz um parasita festejar... O
entretenimento e o trabalho utilitário são apenas alguns remédios
para que a massa não seja incomodada pela depressão, mantendo-a
submetida aos compromissos que, evidentemente, continuam a esmagá-la.
A imagem de um indivíduo que deseja a mentira por medo de assumir
aquilo que, nele mesmo, não cessa de exigir, que o incomoda, que
continua a gritar, isso sim que é deplorável. Como ele não sabe o
que fazer quando o ritmo que o mantém distraído de si é
momentaneamente suspenso, deseja que essa suspensão vá
embora rapidamente. O domingo é o seu grande dia dedicado ao
descanso, mas que é também o dia do seu grande tédio, de um
sentimento de desperdício de vida, de uma dor que será apaziguada
com qualquer coisa que tenha que preencher esse
vazio (as horas dedicadas à televisão, distrações, dormir em
excesso para não sentir o tempo passar). Mais uma vez: isso sim que
é deplorável!
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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.
Comentários
Uma escrita precisa nas mais diversas potências da palavra; exato na medida das articulações e necessário, desanuviando a cegueira de uma máquina adoecida pelo poder, pelo menos!
Me parece que a depressão pode ser um grande parto de si, quando algo de vivo e assujeitado rela no fundo intenso daquilo que é vivo. Des-eixo, catástrofre, caos, um convite da polifonia a tudo que múltiplo, inteiro, com toda dor, gozo e vontade que a vida pode incluir, a criação de mundos, vozes aos montes tecendo a existência.
bjo
Dani
obrigado. Medina.