Reativo e ativo

 

Nietzsche por Hans Johann Wilhelm Olde

Trecho extraído do artigo Corpo e pensamento: a invenção de outros sentidos (2010), de Amauri Ferreira


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O desprezo do corpo tomado pela tradição filosófica ocidental corresponde à descoberta nietzschiana da “história escondida da filosofia”. Nietzsche nos diz que o cansaço de viver gera valor – o valor dos esgotados, que, em uníssono, apontam a saída para os infortúnios da existência por meio do ideal. Um problema que é central na filosofia de Nietzsche é o da geração dos valores, que não está dissociada do modo como vivemos. Quando entendemos que o pensamento e o corpo exprimem a força da vida, não encontramos mais razão em estabelecer uma hierarquia entre eles. Somente assim, ao viver afirmativamente, Nietzsche conseguiu compreender o que levou alguns dos grandes nomes da filosofia a produzirem obras que separam o pensamento da vida: “Meu novo caminho para o 'sim'. – Filosofia, tal como até agora a entendi e vivi, é a procura voluntária também dos lados malditos e condenados da existência. A partir da longa experiência que me deu uma tal peregrinação pelo gelo e pelo deserto, aprendi a considerar de outra maneira tudo o que foi filosofado até agora: – a história oculta da filosofia, a psicologia dos seus grandes nomes veio à luz para mim. ‘Quanto de verdade suporta, a quanta verdade atreve-se um espírito?’ – isso foi para mim a medida propriamente dita. O erro é uma covardia...”1.


A crença no erro (que é o ideal) trata-se de uma fraqueza de viver e a causa disso, segundo Nietzsche, é fisiológica, ou seja, trata-se da “indigestão” das impressões que são produzidas em nós conforme vivemos2. Desse modo, o sujeito torna-se reduzido à sua consciência que não para de ressentir, de reagir o que já passou – tudo que foi experimentado passa a ter uma estranha noção de finalidade, ou seja, de uma suposta boa ou má intenção de alguém (ou de uma entidade sobrenatural) em realizar certas ações sobre ele. Em razão disso, a consciência, no estado de ressentimento, quer controlar e julgar tudo, deseja impedir que o acaso venha causar algum prejuízo pessoal, já que a noção de “pessoa” é inseparável do ressentimento, de uma consciência que deseja, tenazmente, conservar a ilusão do eu. Seja cristão ou cientista, o sujeito reativo investe no ideal ascético, parte do mundo “imperfeito” para o “perfeito”, dá o mais alto valor à consciência (é a alma que será “salva”, é a razão que irá “corrigir” a natureza).


Toda crítica de Nietzsche ao cristianismo e à ciência passa por uma genealogia dos valores nascidos do ressentimento e da vingança contra a vida. Por intermédio da inversão dos valores operada pelo sacerdote judaico, segundo a Genealogia da Moral, o indivíduo submete-se ao seu aspecto consciente e orgânico, impedindo que impulsos ativos inconscientes tornem-se dominantes nele. O ressentido é um tipo fisiologicamente esgotado, incapaz de criar para além de si mesmo. Portanto, os valores que ele reproduz exprimem o seu desejo de conservar o seu modo de viver: “Uma prolongada reflexão sobre a fisiologia do esgotamento levou-me forçosamente à questão de quanto os juízos dos esgotados teriam penetrado no mundo dos valores”3. Tal esgotamento, que é também de Sócrates, de Platão, de Descartes..., parte do pressuposto de que os sentidos do corpo mentem. Ao contrário dessa crença, Nietzsche afirma que é a mentira que é produto do uso equivocado que as pessoas fazem daquilo que os sentidos indicam para elas4. Diagnóstico nietzschiano: o “mundo verdadeiro” e o sujeito do conhecimento, do livre-arbítrio, são mentiras que mantém o ser humano afastado de onde a vida acontece. Por isso a degeneração humana cresce cada vez mais – e um dos sintomas disso é o sentido do trabalho nas sociedades capitalistas. Quanto mais o indivíduo se sente prisioneiro do trabalho, maior a necessidade que ele tem para buscar remédios que aliviam o seu cansaço. Os sujeitos práticos, exaustos de tanto trabalho, crentes no que chamam de “virtude do lucro”, precisam cada vez mais de prazer e de distração, que se tornam seus anestésicos: “Pois viver continuamente à caça de ganhos obriga a despender o espírito até à exaustão, sempre fingindo, fraudando, antecipando-se aos outros: a autêntica virtude, agora, é fazer algo em menos tempo que os demais. [...] Se ainda há prazer com a sociedade e as artes, é o prazer que arranjam para si os escravos exaustos de trabalho”5.


Nietzsche nos indica que o remédio para combater esse esgotamento é a ação sobre a demasiada organização do nosso corpo. É inevitável que o conforto e a segurança, tão propagados pelos valores vigentes, reforcem a sobrevivência e o bom funcionamento dos órgãos do corpo, o que favorece o aspecto reativo da nossa existência, mas que também limita o nosso conhecimento sobre o corpo apenas na sua realidade orgânica. Nesse sentido, podemos chamar de corpo reativo quando o corpo está submetido a uma organização moral. Ora, é justamente essa passividade em operar metamorfoses em si mesmo que precisa ser combatida – e Nietzsche chama de niilismo ativo a ação sobre a nossa própria passividade para, enfim, podermos expandir a nossa vontade de potência ao assimilarmos outras forças.


Sabemos que, devido à organização moral do corpo, nos entristecemos e ficamos distantes do aspecto ativo da existência. Nesse estado, há o real perigo de confundirmos o corpo com uma prisão. Mas o corpo não é uma prisão, é ele que está aprisionado pela organização utilitária. “Tudo aquilo que em mim sente”, diz Nietzsche, “sofre de estar numa prisão; mas a minha vontade chega sempre como libertadora e portadora de alegria”6. Ao contrário do corpo reativo, podemos chamar de corpo ativo aquele que se abre às experimentações – assim o espírito alimenta-se dos sentidos do corpo para distribuir riquezas, para ir além de si: “Assim o corpo atravessa a história – tornando-se outro e lutando. E o espírito – que será, para ele? O arauto, companheiro e eco de suas lutas e vitórias”7. Cuidar de si implica ter um cuidado com as relações – e isso Ecce Homo, mais do que qualquer outro escrito de Nietzsche, nos fornece um material valiosíssimo. Especialmente no capítulo Por que sou tão inteligente, podemos perceber que a inteligência mencionada por Nietzsche está relacionada à escolha do lugar, do clima, da alimentação, da bebida, das companhias, das distrações, em suma, de uma maneira de viver com o mínimo de “não” ao que nos é contrário, pois corremos sempre o risco de perder muita energia quando nos esforçamos para afastar para bem longe, de modo frequente, o que não nos interessa. Em razão disso, um descuido dessas pequenas coisas pode impedir, de fato, que um gênio vingue: “Tenho em mente um caso em que um espírito notável e potencialmente livre tornou-se estreito, encolhido, um rabugento especialista, por simples falta de fineza de instintos com relação ao clima”8.

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1 A vontade de poder, § 1041, Contraponto, 2008, tradução de Marcos S. P. Fernandes e Francisco J. D. de Moraes.

2 Tal “indigestão” é o próprio ressentimento, que surge facilmente em indivíduos que já estão fisiologicamente obstruídos, isto é, que estão dominados por impulsos que não crescem em potência.

3 Idem, § 54.

4 “O que fazemos do seu testemunho é que introduz a mentira”, conforme Crepúsculo dos ídolos, § 2 do capítulo III, Companhia das letras, 2006, tradução de Paulo César de Souza.

5 A gaia ciência, § 329, Companhia das letras, 2001, tradução de Paulo César de Souza.

6 Assim falou Zaratustra, “Nas ilhas bem-aventuradas”, Civilização Brasileira, 2003, tradução de Mário da Silva.

7 Idem, “Da virtude dadivosa”.

8 Ecce homo, § 2 do capítulo “Por que sou tão inteligente”, Companhia das letras, 2003, tradução de Paulo César de Souza.

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