Automatismo e intensidade
Trecho extraído do artigo Corpo e pensamento: a invenção de outros sentidos (2010), de Amauri Ferreira
O filósofo francês Henri Bergson nos diz que o ser vivo recebe estímulos e também os devolve, ou seja, o ser vivo percebe e age. Dos seres vivos que são constituídos por um sistema nervoso mais simples até aos mais complexos, o intervalo entre os estímulos recebidos e a resposta efetuada corresponde ao que Bergson chama de zona de indeterminação, que é a liberdade que o ser vivo possui para agir sobre os corpos exteriores. No ser humano, essa zona de indeterminação corresponde ao cérebro, já que este é um órgão que recebe, analisa e seleciona estímulos para distribuí-los ao mecanismo motor destinado a efetuar a resposta necessária. Portanto, o cérebro impede que a resposta a um estímulo recebido seja diretamente efetuada: “O estímulo periférico, em vez de propagar-se diretamente para a célula motora da medula e de imprimir ao músculo uma contração necessária, remonta em primeiro lugar ao encéfalo, tornando depois a descer para as mesmas células motoras da medula que intervêm no movimento reflexo”1.
À medida que o sistema nervoso recebe os estímulos dos corpos exteriores, há uma complexidade crescente dos mecanismos motores do nosso corpo, o que multiplica as vias para a nossa melhor resposta. Quanto mais o sistema nervoso se desenvolve, “mais numerosos e distantes tornam-se os pontos do espaço que ele põe em relação com mecanismos motores cada vez mais complexos: deste modo aumenta a latitude que ele deixa à nossa ação, e nisso consiste justamente sua perfeição crescente”2. Há, portanto, um crescimento do intervalo entre o estímulo recebido e a resposta executada. Ora, quanto maior a zona de indeterminação de um ser vivo, maior será a sua percepção consciente: “E, com isso, a riqueza crescente dessa percepção não deveria simbolizar simplesmente a parte crescente de indeterminação deixada à escolha do ser vivo em sua conduta em face das coisas?”3. Em suma: conforme vivemos, somos afetados pelos movimentos transmitidos pelos outros corpos, de tal maneira que, devido à complicação do nosso sistema nervoso, podemos ter uma maior amplitude para as nossas ações. Andamos, falamos, escrevemos, etc., em razão dos mecanismos motores que foram produzidos em nosso corpo devido à repetição dos movimentos transmitidos pelos corpos que nos modificam.
Bergson chama de hábito a memória do corpo que está relacionada aos seus mecanismos motores. O hábito faz com que a hesitação, ou seja, o estranhamento, seja cada vez menor, e por isso temos uma sensação de familiaridade e de um automatismo crescente nas relações que constituem o nosso cotidiano. Mas o que é, de fato, uma potência do corpo, acaba por se tornar algo embotador quando passamos a investir cada vez mais na vida prática, com respostas rápidas, o que inevitavelmente reduz a nossa zona de indeterminação e agrava a nossa impossibilidade de experimentar. Chamamos de corpo automatizado o corpo que é dominado pela familiaridade, pela praticidade, pela utilidade social. Nesse sentido, é inevitável que o pensamento seja confundido com as abstrações que a nossa percepção faz da matéria, com um conhecimento prático e utilitário, com uma necessidade crescente de instruir-se, de especializar-se – o sujeito prático faz uma triste imagem do pensamento ao imaginar que ele se reduz às coisas estabelecidas.
Mas Bergson foi um filósofo que pensou o tempo real. A sua obra denuncia os que falsificam o tempo ao espacializá-lo (o tempo cronológico) e que, por isso, permanecem distantes de pensar a natureza do tempo como duração ontológica. Não se trata de um tempo que foi, mas de um tempo que é, na medida em que o nosso passado não cessa de atualizar-se justamente na nossa zona de indeterminação e coexistir com um presente que não cessa de passar. Observamos um animal à espreita, mas não podemos observar as intensidades que se produzem nele enquanto dura. Sua amplitude para agir é notória em razão da suspensão do sensório-motor e das vias motoras que possui para a escolha da melhor resposta, mas, conforme afirma Bergson, “o que não se vê é a tensão crescente e concomitante da consciência no tempo”4. Chamamos de corpo intensivo aquele que suspende o sensório-motor, que aumenta a sua liberdade para agir por intermédio da experiência da duração, que permite a gestação de uma ideia. Bergson relaciona a noção de invenção à suspensão do corpo prático e funcional, para permitir uma atualização cada vez mais rica da nossa memória – uma memória a serviço da produção do futuro, do nosso futuro. Por isso a palavra “indeterminação” não poderia ser mais rigorosa: ela exprime aquilo que é nosso, isto é, a nossa liberdade corresponde ao que em nós não é determinado exteriormente, quando não atendemos, ansiosamente, a uma demanda exterior. Portanto, a escolha efetuada, por ser o resultado de uma espera, de uma alimentação do tempo, exprime o nosso ato criativo, a nossa capacidade singular de inventar o nosso futuro e o futuro do mundo: “O espírito retira da matéria as percepções que serão seu alimento, e as devolve a ela na forma de movimento, em que imprimiu sua liberdade”5.
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1 Matéria e memória, p. 25, Martins Fontes, 2ª edição, 1999, tradução de Paulo Neves.
2 Idem, p. 27.
3 Idem.
4 Idem, p. 290.
5 Idem, p. 291.
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