Conhecimento e liberdade


Trecho extraído do livro Introdução à filosofia de Spinoza (2ª edição, 2022), de Amauri Ferreira.

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Como é impossível que o ser humano não seja uma parte da natureza, não haveria, em um primeiro momento, qualquer possibilidade de ele ter uma vida livre. Como há, apenas em certo sentido, uma oposição entre os indivíduos (já que um indivíduo pode decompor outro), restaria ao ser humano encontrar a sua liberdade em outro mundo, transcendente. Impotente para regular e refrear as paixões, restaria a ele negar o testemunho dos sentidos do seu corpo e crer na imortalidade da sua alma. 

Como combate a todo modo de viver que nega o corpo – e as paixões –, Spinoza nos diz que a liberdade não está em outro mundo, mas neste mundo mesmo. Viver de modo livre consiste, basicamente, na efetuação da potência da nossa mente para regular e refrear as paixões. A potência do intelecto corresponde à liberdade humana. Conhecimento e liberdade.

Essa potência de conhecer adequadamente, pelo segundo gênero de conhecimento, exprime-se da seguinte maneira: a nossa mente passa a ligar as imagens ou afecções do corpo humano à ordem do entendimento. A ideia adequada apenas surge quando podemos organizar as afecções (ou os encontros) que combinam com a nossa relação característica (a união de corpos que nos constitui): “Durante o tempo em que não estamos tomados por afetos que são contrários à nossa natureza, nós temos o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto” (Ética, 5, Prop. 10). Deixamos de amar ou odiar uma causa exterior quando a nossa mente liga a produção da alegria e da tristeza às suas causas reais, ou seja, às causas relacionadas à conveniência ou não de uma certa mistura entre o nosso corpo e outros corpos: “Se separamos uma emoção do ânimo, ou seja, um afeto, do pensamento da causa exterior, e a ligamos a outros pensamentos, então o amor ou o ódio para com a causa exterior, bem como as flutuações de ânimo, que provêm desses afetos, serão destruídos” (Ética, 5, Prop. 2). De um conhecimento imaginário, que é fonte das ilusões da consciência, a nossa mente passa a ligar a produção das paixões às causas reais, ou seja, ao encadeamento infinito de corpos do modo infinito mediato. Dos infinitos corpos que existem na natureza, alguns podem combinar com a nossa natureza (noção comum menos geral). A nossa mente produz uma ideia clara e distinta dos afetos passivos, o que nos faz padecer menos das excitações e das tristezas: “Portanto, um afeto está tanto mais sob nosso poder, e a mente padece tanto menos, por sua causa, quanto mais nós o conhecemos” (Ética, 5, Prop. 3, cor.); “[...] segue-se que cada um tem o poder, se não absoluto, ao menos parcial, de compreender a si mesmo e de compreender os seus afetos, clara e distintamente e, consequentemente, de fazer com que padeça menos por sua causa” (Ética, 5, Prop. 4, esc.). Portanto, quanto mais a mente conhece a produção das paixões, mais ela é capaz de ordenar as afecções a seu favor. Trata-se de um conhecimento dos afetos que somos capazes.

Como é possível perceber, o remédio para as paixões não está, portanto, na crença em um mundo transcendente ou em algum salvador, mas sim na potência que a nossa mente tem para compreender, para formar as noções comuns. A partir do entendimento, podemos evitar a ambição, a gula, a embriaguez, o ódio, a inveja, a comiseração, a vingança e outras paixões que são nocivas: passamos a refrear essas paixões por causa do desejo ativo de firmeza. Logo, o remédio para as paixões chama-se conhecimento: “E, por isso, não se pode imaginar nenhum outro remédio que dependa de nosso poder que seja melhor para os afetos do que aquele que consiste no verdadeiro conhecimento deles, pois não existe nenhuma outra potência da mente que não seja a de pensar e de formar ideias adequadas” (Ética, 5, Prop. 4, esc.). Como há uma potência real da nossa mente para conhecer e ordenar as afecções do corpo, ao efetuarmos isso, ficamos alegres com a nossa própria potência.

Quando a mente conhece as coisas adequadamente concebe tudo como necessário, pois tudo na natureza segue uma ordem desejante: “A mente compreende que todas as coisas são necessárias, e que são determinadas a existir e a operar em virtude de uma concatenação infinita de causas. Portanto, à medida que compreende isso, a mente padece menos dos afetos que provêm das coisas e é menos afetada por elas” (Ética, 5, Prop. 6, dem.). Quem é livre não se deixa abalar pelos afetos de esperança e medo porque a sua mente compreende a produção das coisas de modo eterno (um afeto mais forte), o que lhe faz viver de modo tranquilo e sereno: “Tudo o que a mente concebe sob a condução da razão, concebe-o sob a mesma perspectiva da eternidade ou da necessidade, e é afetada pela mesma certeza. [...] Portanto, à medida que a mente concebe as coisas segundo o ditame da razão, ela é afetada da mesma maneira, quer se trate da ideia de uma coisa futura ou passada, quer de uma coisa presente” (Ética, 4, Prop. 62, dem.). A mente compreende que o encadeamento das coisas é necessário, independente das vicissitudes do tempo, pois considera algo sempre presente nas coisas, isto é, a produção desejante da natureza. A diferença fundamental entre o indivíduo livre e o indivíduo que está na servidão, é que este, por viver de modo ignorante, padece das paixões produzidas no encadeamento desejante de todas as coisas (é o lamuriento, o ressentido, etc.), e aquele, por ter ideias adequadas, age e interfere no encadeamento desejante, gerando uma variação no que estava estabelecido, de modo a favorecer a sua potência.

É evidente que existe apenas composição na natureza, mesmo nos encontros que decompõem partes do nosso corpo ou que nos aniquila (noção comum mais geral). Por exemplo: a morte pode ser um mau encontro para mim, mas é um bom encontro para o veneno que a produz, já que ele se compõe com algumas partes do meu corpo. O nascimento, a morte e tudo que se passa conosco, apenas são efetuados porque há uma relação constante de movimento e repouso, de velocidade e lentidão entre os corpos mais simples. Afinal, a natureza não age por finalidade, não age em vista do nosso bem e do nosso mal. Ora, o conhecimento do segundo gênero implica um conhecimento sob um certo aspecto de eternidade: a existência das coisas é uma verdade eterna. Nunca haverá interrupção na produção da existência das coisas.

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