Discurso do trabalho filosófico
1.
Meu encontro com a Filosofia ocorreu no início de 1998, na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Se esse acontecimento numa faculdade de comunicação social é algo estranho, pode ser igualmente estranho que esse encontro não tenha ocorrido nas aulas de Filosofia que faziam parte da graduação de Relações Públicas. Naquela época, a Filosofia era uma disciplina lecionada somente no segundo ano, e o encontro que eu tive com ela ocorreu antes disso, no primeiro ano da graduação, na disciplina Teoria da comunicação. Tudo começou quando o prof. Laan Barros nos entregou dois textos para a realização de um trabalho bimestral: A indústria cultural, de Theodor Adorno e Max Hockheimer, e A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. A leitura desses textos me despertou imediatamente um desejo de conhecimento num grau que nunca havia sentido. É verdade que não compreendi profundamente aqueles pensamentos, porém, o contato com eles foi suficiente para que, durante a leitura, eu dissesse para mim repetidas vezes, com um sentimento de urgência: “É necessário ir contra o sistema!”1...
Levado por essa “vontade de explorar”, isto é, pelo desejo de continuar a ser atraído por pensamentos que eu não tinha acesso pelos meios de comunicação e muito menos pelas relações cotidianas – pensamentos que pudessem me levar, mesmo temporariamente, para fora do sistema2 –, fui me tornando, gradualmente, visitante frequente da biblioteca da faculdade, pois as aulas do prof. Laan não eram suficientes para saciar minha fome de conhecimento. Inicialmente, lia textos como O fetichismo na música e a regressão da audição, de Theodor Adorno, e alguns outros autores que tinham, ou não, alguma conexão com Adorno e Benjamin (alguma coisa de Freud, Heidegger, entre outros). Minha compreensão continuava a ser superficial, mas realmente não era isso que importava naquela época. O fato é que aquilo era extraordinário, uma vez que, além de nunca ter lido um texto realmente filosófico, eu não me sentia estimulado a ler livros – qualquer tipo de livro – antes da faculdade. Em casa quase não havia esse estímulo, e na escola pouquíssima coisa me interessava... Na época da Cásper Líbero, na disciplina Lingua Portuguesa, o professor elogiava muito a Clarice Lispector e, mesmo assim, não me senti atraído em lê-la (e se ele tivesse nos entregado um texto da Lispector, como fez o prof. Laan com os frankfurtianos?). Contudo, o encontro com os textos de Adorno, Hockheimer e Benjamim foram determinantes para operar uma primeira grande mudança na minha existência, certamente porque eu senti que eles tocaram, de alguma forma, em algo que me perturbava constantemente: o sentido do trabalho na economia capitalista.
2.
Em meio a estudos filosóficos autônomos e desorganizados, percebi, lentamente, que passava mais tempo na biblioteca da faculdade do que na sala de aula. Andava pelos corredores com livros sem qualquer relação com a graduação, como o Vigiar e punir, do Michel Foucault, ou o Discurso da servidão voluntária (que me marcou muito), do Etienne de La Boétie. Era comum entrar na sala de aula com um livro perigoso e sentir o enorme contraste entre o que eu tinha lido e o que era exposto na sala. Eram conteúdos completamente incomparáveis. Imagine a situação: ainda sob o efeito de uma viagem psicodélica provocada pela recente leitura de um belo texto filosófico, me encontro, de súbito, em uma aula sobre sei lá quantas maneiras de se fazer uma reunião! É sair de um mundo de pensamento e arte para entrar no mundo da vulgaridade e utilidade cotidianas. Foi inevitável que, progressivamente, a maioria das aulas me cansasse cada vez mais – limitava-me a entrar na sala, com a aula em andamento, a fim de registrar a presença e não ser reprovado por faltas, para, enfim, poder sair de lá aliviado, sentindo permanecer com a mente saudável, graças à minha constante vacinação filosófica...
Nessa viagem solitária e sem um rumo definido, tive um encontro que gerou a minha segunda grande mudança: a filosofia de Friedrich Nietzsche. Surpreendentemente, havia num dos corredores da Cásper Líbero uma pequena exposição em homenagem ao centenário da morte do filósofo alemão, em 2000, o que certamente despertou a minha curiosidade em começar a ler a sua obra. Antes disso, eu apenas havia lido citações sobre as ideias dele. Meus estudos tiveram início com a edição das obras incompletas de Nietzsche, da coleção Os pensadores. Não compreendia quase nada do que lia, mas sentia a emoção do pensamento de Nietzsche repercutir em mim. Naquela época eu tinha 23 anos, mas parece que a leitura de Nietzsche me fez saltar para os 35 anos – ou até mais!... Eu o lia onde fosse possível, no ônibus, no metrô, no local de trabalho, no parque. As ideias nietzschianas eram muito, muito novas para mim, embora, simultaneamente, eu dissesse: “Sim! É isso mesmo!”. Fazia total sentido a conexão entre o que Nietzsche dizia e o que eu pensava. Percebia cada vez mais que o conhecimento deve estar a serviço da vida – era um conhecimento para se viver livremente, isto é, para se viver de modo realmente novo, singular. Desde a época do ensino secundário – ou talvez até antes disso – eu sentia que era um absurdo nos incomodarmos com o julgamento das outras pessoas sobre o que fazemos ou sobre o que deixamos de fazer. Entretanto, não é tarefa fácil seguir o nosso coração diante da ameaça de recebermos as pedradas das outras pessoas, como se estivéssemos na senda da “loucura” ou de uma existência “sem futuro”. Nietzsche era o mais potente alimento para me fortalecer diante do juízo alheio. Finalmente tinha encontrado o melhor aliado para seguir adiante num caminho que, até então, era traçado de modo solitário – nesse percurso, o meu maior estímulo vinha dos textos dele, cuja compreensão não foi de modo racional, mas afetiva, uma vez que ela aconteceu na região do “torne-se o que tu és”, algo inseparável do árduo exercício de não querer se sentir totalmente integrado aos valores da sociedade... Lembro-me que uma professora da faculdade, com estranhamento, perguntou-me por que eu lia Nietzsche. Minha resposta: “Porque ele toca nas experiências que vivemos...”.
3.
O desejo de exploração fez-me buscar conhecimentos não somente em livros, mas também em cursos livres oferecidos pela própria Cásper Líbero. Frequentei um curso de “Jornalismo Cultural”, cuja experiência foi notável, em razão de as aulas terem uma qualidade muito superior àquelas que eu tinha na graduação. Em especial, as aulas dos professores Teixeira Coelho, Lorenzo Mammi e Irineu Franco Perpétuo fizeram-me ter uma outra percepção de como conduzir uma aula, com muita técnica e concentração – aliás, a aula do prof. Teixeira me marcou muito mais pela sua concentração do que pelo conteúdo exposto. Apenas uma aula com ele foi suficiente para que eu tivesse um verdadeiro aprendizado semiótico na prática – um aprendizado que até hoje trago comigo nas aulas que eu apresento...
Acompanhei outros cursos livres na faculdade que eram menos relevantes, mas, apesar disso, aquelas aulas continuavam a ser mais interessantes do que as da graduação. Até que, de curso livre em curso livre, fiz a inscrição no “Mídia, subjetividade e consumo”, com o prof. Valter Rodrigues. Era o segundo semestre de 2002, ano em que eu já deveria estar com o diploma em mãos e, segundo o script de uma ficção banal de sucesso, ter um emprego de Relações Públicas em uma renomada empresa. Porém, o curso ainda não estava concluído, porque eu simplesmente fui reprovado em duas matérias por enorme desinteresse no conteúdo delas – curiosamente, como eu ainda frequentava a faculdade para tentar, enfim, concluir a graduação, fui informado do curso ministrado pelo prof. Valter, que eu ainda não conhecia, pois ele lecionava Psicologia na Cásper Líbero somente na graduação de Publicidade e Propaganda.
Minha lembrança da primeira aula que tive com ele é nítida. Era sábado à tarde, entrei na sala uns 15 minutos antes do início da aula e vi umas três ou quatro pessoas lá dentro. Como ainda estava cedo para a aula começar, resolvi sair de lá e, no corredor, cruzei com um homem que usava suspensórios, quase careca, que ia em direção à sala. “Deve ser o professor do curso!” – pensei comigo. Continuei a andar pelos corredores por mais alguns minutos e, próximo do horário do início da aula, voltei para a sala e vi umas oito pessoas lá dentro. Então, o professor disse: “Como tem pouca gente, vamos fazer um círculo”. A aula começa, o prof. Valter mexe continuamente na barba enquanto fala, olha para nós sorrindo, cita Nietzsche e outros pensadores que eu tinha lido pouco (como Foucault e Freud) e muitos outros que eu desconhecia completamente (Spinoza, Deleuze, Guattari, Negri, Lazzarato, Sade). Um furacão de ideias novas me engoliu completamente e, após uns 20 minutos de aula, tive a sensação de ter, enfim, encontrado o interlocutor que me faltava. Mais ainda: de ter encontrado “o” professor que eu buscava! Uma ou duas aulas depois, percebi que, além disso, eu havia encontrado o amigo que precisava3: como o prof. Valter tinha o costume de enviar por e-mail alguns textos dos autores citados nas aulas, ele me apresentou um conteúdo que jamais imaginei que pudesse existir. Um desses textos memoráveis foi o Tratado da correção do intelecto, de Baruch Spinoza, cujas primeiras linhas são de uma honestidade extraordinária com a vida e o pensamento, com um grau de intensidade que eu apenas havia encontrado em Nietzsche... Recordo-me que o professor sempre falava com entusiasmo sobre o livro O anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Fui atrás do livro na biblioteca da faculdade e encontrei uma edição dos anos 70, da editora Imago. O início avassalador daquele livro me causou uma grande estranheza como nenhum outro texto, mas foi o suficiente para desejar avançar naquele enigmático pensamento – entretanto, na primeira leitura, não consegui avançar muito (não passei das 15 primeiras páginas!).
Além de me fixar na biblioteca, vi-me colado na pessoa do prof. Valter, como um jovem que teve a fortuna de encontrar o seu grande mestre: terminava a aula, ele descia pelo elevador e eu descia junto; ele ia para a agência bancária sacar dinheiro e eu estava lá, ao lado dele; ele voltava para casa de metrô e eu me prendia nele. Ficávamos horas conversando no bar em frente à Cásper Líbero, falando sobre cinema, literatura, clínica, filosofia, política. Sentia que ele gostava muito da minha companhia, visto que nossas conversas fluíam facilmente. Sem dúvida, eu ouvia mais do que falava, porque eu queria aprender, aprender e aprender, e ele queria falar, falar e falar – todavia, não se tratava de uma verborragia pedante ou com acento erudito, ao contrário, o conjunto de sua fala exprimia experiências vividas com o pensamento que eram generosamente compartilhadas. Penso que essas experiências poderiam também ter sido compartilhadas com outras pessoas do curso – no entanto, a maioria dos participantes estava mais preocupada em “aplicar” uma teoria que, para a decepção deles, era “muito difícil”. Inevitavelmente, o prof. Valter era alguém distante para aquelas pessoas, sendo que, para mim, ele era a pessoa mais próxima que eu havia encontrado na minha existência... E também a mais extraordinária que conheci até hoje.
4.
O encontro com o prof. Valter alimentou ainda mais o meu desejo de ministrar aulas. Esse desejo surgiu na Cásper Líbero, mas não tenho certeza se isso se tornou mais claro para mim no segundo ou no terceiro ano da graduação. Digo mais claro para mim, porque na época do ensino secundário eu já tinha um sentimento de “querer dizer algo”, mas não sabia o quê. É provável que alguma facilidade que eu tinha com a escrita, misturada com o sentimento de “querer dizer algo”, tenha me levado a optar pela faculdade de comunicação social. A possibilidade de ser remunerado por um trabalho onde eu conseguiria exercitar a escrita, e também a oratória, poderia ser um caminho viável – nesse sentido, escolher a graduação em Jornalismo na Cásper Líbero seria uma opção indiscutível. Entretanto, optei por Relações Públicas sem sequer saber do que se tratava! Foi determinante o fato de que, comparado com o Jornalismo, era o caminho mais fácil para ser aprovado no vestibular, pois o que realmente me importava era a comunicação social...
Naquela época, o caminho lógico para mim era tentar seguir uma carreira acadêmica. Quanto mais eu lia os autores que me fortaleciam, mais eu me perguntava “Por que as pessoas não sabem que toda essa riqueza existe?”. Diferentemente de alguns anos atrás, aquele sentimento de “querer dizer algo” foi, afinal, misturando-se com um conteúdo filosófico realmente relevante, ou seja, eu percebia cada vez mais o que era necessário transmitir para as pessoas. No local de trabalho, eu tentava conversar com colegas sobre o que tinha aprendido nas aulas do prof. Valter. Praticamente em vão! Um único colega de trabalho deu-me ouvidos: encerrada a jornada de trabalho às sextas, íamos para um bar e filosofávamos sobre Raul Seixas, Nietzsche e os valores do capitalismo. Todavia, eu sentia que a coisa tinha que ser consistente, que não dava para ficar apenas em conversas de bar entre dois trabalhadores insatisfeitos com o sistema – era necessário ministrar aulas para ir além daquela “filosofia de boteco”. Por causa disso, comecei a frequentar a pós-graduação lato-sensu da Cásper Líbero em 2003, para, posteriormente, tentar um mestrado. Porém, o fator determinante para essa decisão foi a possibilidade de poder continuar a assistir às aulas do prof. Valter, que lecionava também na pós-graduação. Era uma grande oportunidade de continuar grudado nele! No primeiro semestre, além da disciplina que ele lecionava, eu frequentava outras duas disciplinas, sendo que uma delas era com o prof. Laan de Barros, o mesmo que me apresentou Adorno e Hockheimer na graduação – porém, naquela altura, os frankfurtianos já não me atraíam mais...
Um dia, em um dos encontros que eu tive com o prof. Valter na lanchonete da faculdade, fui surpreendido com um convite dele: “Eu conheço um professor que irá iniciar um grupo de estudos sobre Nietzsche. Você tem interesse?”. Sem vacilar, respondi: “É claro! Onde? Quando?”. Não queria saber nem quem era o professor, seu currículo, suas publicações – isso não me importava. Aliás, nunca me importei com esses detalhes acadêmicos nos cursos em que me inscrevi, pois o que eu queria mesmo era participar de um grupo, aprender mais, conhecer outras pessoas que desejavam estudar a obra de um grande pensador como Nietzsche. Os encontros eram agendados para as manhãs de sábado, no bairro de Santana, com o prof. Luiz Fuganti.
No primeiro encontro, era um grupo de oito ou dez pessoas em um ambiente nada acadêmico. Nossos estudos começaram pelo livro A gaia ciência: o prof. Luiz comentava aforismo por aforismo com grande profundidade e paixão. Naquele ano, dei-me conta de que estava em um contexto que realmente me fazia muito bem: até que enfim, eram aulas verdadeiras que eu assistia, os professores honestos com o pensamento e a vida, que não tinham vergonha de criticar o que precisava ser criticado, de inspirar os estudantes a pensarem por si mesmos. Assistia às aulas do prof. Valter na pós-graduação, admirado pela sua extrema dedicação na organização do curso; assistia às aulas do prof. Luiz fora da academia, admirado pelo seu entusiasmo na condução das aulas – essas duas qualidades que todo professor deve ter, organização e entusiasmo, eu aprendi com eles... Não queria mais sair daquele imenso furacão filosófico, que podia ser assustador por fora, mas extremamente sedutor por dentro. Era inevitável que, no final daquele ano, eu interrompesse os estudos acadêmicos, sem concluir a pós-graduação, e seguisse o meu coração. O “projeto mestrado” para me tornar um professor universitário foi, então, adiado – e jamais retomado.
5.
Como eu via que o prof. Luiz conseguia se manter financeiramente com os cursos livres, eu me perguntava: “Por que não posso fazer o mesmo?”. Eu estava em conflito, quase desde sempre, com o trabalho assalariado, e me lembro que, ainda nos primeiros encontros do grupo Nietzsche, falei para o prof. Luiz sobre a minha angústia. Então, de modo direto e com voz alta, ele me disse: “Tem que sair de lá o mais rápido possível!”. Uau! Ninguém tinha dito isso para mim, e era óbvio que essa era a melhor solução, mas nem sempre estamos prontos para encarar o óbvio. Porém, compreendi com o tempo que esse “mais rápido” tem que ser feito com paciência e prudência. Também falei para o prof. Valter sobre a minha crise na relação com o trabalho, e ele me sugeriu oferecer aulas livres. No entanto, como começar?
Inicialmente, fiz uma tentativa, em 2004 ou 2005 (não tenho certeza do ano), de ministrar uma pequena aula, introdutória e informal, sobre Spinoza, a um amigo que conheci na pós-graduação da Cásper Líbero. Eu tinha terminado uma leitura solitária da Ética e sentia, nas nossas conversas, que ele tinha uma atração pela filosofia. A aula ocorreu num lugar improvisado no Centro Cultural São Paulo. Foi o meu primeiro ouvinte filosófico!... Apesar disso, não foi uma experiência totalmente diferente para mim, uma vez que na graduação eu sentia que tinha facilidade de falar em público quando havia apresentações de atividades curriculares para a sala. Cada apresentação era um exercício de despersonalização que me dava prazer. A experiência mais marcante foi em uma aula de técnicas de Relações Públicas. A regra era que cada aluno tinha que se dirigir ao púlpito e falar sobre um determinado tema durante cinco minutos. Chegou a minha vez e lá fui eu, cheio de vontade, segurando um catálogo de uma grande loja de roupas, com um chiclete num dos bolsos da calça, e dois bilhetes no outro bolso. Comecei a falar no púlpito, mas não consegui ficar parado ali por mais de um minuto. Como precisava demonstrar para as pessoas a minha indignação, não era possível me limitar a uma postura formal. Andando pela sala, falei sobre o consumismo, o racismo e qualquer coisa que eu considerava um enorme absurdo existir na sociedade. Entreguei os bilhetes para os dois únicos alunos negros da turma (não me lembro exatamente o conteúdo dos bilhetes, mas certamente eram palavras de incentivo por eles serem minoria na faculdade), puxei o chiclete do bolso e, mascando-o, abri o catálogo da loja de roupas para mostrar que não havia nenhuma pessoa negra em todos aqueles refinados anúncios publicitários. Segurando o catálogo com uma das mãos, perguntei para o público: “Vocês sabem o que eu faço com isso?”. Em seguida, com a sala em silêncio, atirei o catálogo contra a parede... Finalizei com um “Obrigado!” e ouvi, orgulhoso, os aplausos entusiasmados. A performance durou uns quinze minutos, para a (aparente) ira do professor! Depois dessa experiência, percebi que se eu não fosse professor, talvez pudesse ser ator... Aprendi que quando somos levados pela necessidade de ter o que dizer, superamos qualquer vergonha de falarmos em público – ao contrário, o público é que deve ser desbloqueado para poder ouvir um discurso que não está habituado. Entretanto, ainda não eram palavras que pudessem, gradualmente, operar revoluções imperceptíveis nos ouvintes. Essas apresentações na graduação eram pequenas experimentações de despersonalização, mas ainda faltava um conteúdo consistente, o que era possível no formato de uma aula, ou melhor, no formato de um curso. Porém, a pergunta persistia: como começar?...
No final de 2005, eu assisti a uma palestra sobre Fernando Pessoa em um espaço cultural chamado L'arco Baleno, que ficava numa aconchegante casa no bairro da Pompéia. Encerrado o evento, procurei a proprietária do espaço, a Valéria Bernardes. Uma mulher muito simpática, com grande interesse em psicanálise (admirava Jung) e aberta à possibilidade em oferecer conteúdo de filosofia naquele espaço. Conversamos sobre a possibilidade de uma palestra gratuita e chegamos facilmente a um acordo. Agendamos para o dia 8 de fevereiro de 2006, às 19h30. O tema foi O ressentimento e a má consciência em Nietzsche. Como eu estava habituado a ir a palestras em diversos locais sempre como ouvinte, foi uma experiência muita estranha chegar ao L'arco Baleno e saber que as pessoas estavam lá para me ouvir – não eram muitas, havia umas oito pessoas, mas, para quem iria ministrar a primeira palestra da vida, era o suficiente para sentir um frio na barriga... Apesar disso, durante a aula eu me senti muito tranquilo e confiante. Percebia, pelas expressões do público, que o conteúdo da palestra provocava muito interesse, o que me dava ainda mais força para tentar ser bem claro na exposição das ideias de Nietzsche. Falei em torno de uma hora, depois surgiram as perguntas e tudo fluiu incrivelmente muito bem. Encerrado o evento, tive a sensação de que era aquele caminho que eu deveria traçar... A Valéria estava claramente satisfeita com o que viu. Mais tarde, ao chegar em casa, abri o meu e-mail e vi que ela me enviou uma entusiasmada mensagem: “Amauri, estou aqui só para lhe agradecer. Fiquei muito feliz de poder ter partilhado do seu conhecimento, desfrutado de sua presença e, portanto, um sentimento de amizade e reciprocidade. Você apareceu, eu gostei, sugeri, você aceitou e, sem nenhuma resistência, apresentou. Muito obrigada pela sua boa vontade e particularmente sobre a forma como discorreu sobre o assunto. Simples e muito conteúdo, valioso até. […] O pessoal ficou encantado. Todos gostaram muito. L'arco Baleno está à sua disposição e sempre também, é claro, esperando novas oportunidades”.
Naquele momento, apareceu finalmente para mim a resposta à pergunta “como começar?”: agendei com a Valéria o meu primeiro curso, com início em 17 de maio de 2006, cujo tema foi Introdução à filosofia de Nietzsche, em seis aulas. E assim começou a minha história como professor de cursos livres de filosofia... Posteriormente, tivemos no L'arco Baleno mais um curso sobre Nietzsche no segundo semestre daquele ano, e um outro, sobre Spinoza, no primeiro semestre de 2007. Como as minhas turmas não eram grandes (assim como as turmas dos outros cursos que eram realizados por lá), havia problemas financeiros que ameaçavam a sobrevivência do L'arco Baleno. A Valéria fazia tudo com o coração, mas chegou uma hora em que era impossível manter o sonho de um centro cultural com filosofia, cinema e literatura. Em agosto daquele ano, o L'arco Baleno deixou de existir, mas a sua breve existência foi essencial para o meu trabalho de professor. Foi lá que comecei a adquirir experiência na organização dos cursos (tinha total liberdade para isso), de exercitar a concentração durante as aulas, de expressar minha paixão por aquilo que eu estudava – o que não era difícil, pois, afinal, como eu sentia que a filosofia me fortalecia, eu desejava que as outras pessoas também se fortalecessem com ela.
6.
Desde o início desse trabalho de professor, nunca fiquei sequer um semestre sem ministrar algum curso de filosofia. Ao longo de todos esses anos, fiz diversas parcerias, de livrarias de rua a consultórios de psicologia. Em 2007, a Escola Nômade de Filosofia, do prof. Luiz Fuganti, passou a divulgar os meus cursos na programação, o que me ajudou a formar novas turmas e ampliar as parcerias. Nesse mesmo ano, havia um pequeno grupo da Psicologia da PUC-SP interessado em estudar o livro O anti-Édipo. Fizemos o primeiro encontro no Centro Acadêmico de Psicologia. Lá estava eu, no meio de um grupo de jovens, ministrando uma aula em um ambiente completamente novo para mim. Comecei a falar sobre as máquinas desejantes de Deleuze & Guattari no meio de um entra-e-sai de estudantes, o que era infernal para quem precisava de um alto grau de concentração. O ventilador direcionado para mim também não me ajudou muito! Apesar disso, a participação do grupo foi excelente, demonstrando grande interesse no assunto. Em seguida, os próprios participantes sugeriram realizar os próximos encontros em um local mais silencioso, o que concordei de imediato! Também naquela época, havia apenas dois participantes num curso sobre o livro Ecce Homo, de Nietzsche, com os primeiros encontros numa sala que eu aluguei em Perdizes. Portanto, nesses primeiros anos as turmas eram pequenas (porém, sempre muito interessadas no conteúdo que era exposto), com parcerias que nem sempre duravam muito, já que, por diversos motivos, havia mudanças constantes de local para a realização das aulas. As coisas começaram a ficar mais consistentes a partir de 2008, na parceria com uma livraria de rua que havia em Moema. Ali, comecei a oferecer cursos para públicos maiores (houve uma turma sobre Spinoza que chegou a ter 29 participantes), possibilitando o surgimento de outras parcerias com pessoas que frequentavam aquelas aulas (psicólogas, por exemplo).
Com o crescimento desse trabalho filosófico, era inevitável que eu quisesse conquistar uma maior liberdade na organização dos cursos. Em 2010, a minha saída da Escola Nômade de Filosofia ocorreu para que eu pudesse obter o controle absoluto da divulgação e formação das novas turmas. Inicialmente, criei um blog e um mailing. Posteriormente, tive a necessidade de distribuir algumas dezenas de cartões que eram, com certeza, um pouco toscos, uma vez que eram impressos em casa. Naquela época, aqueles cartões – onde estava escrito Cursos Livres de Filosofia, além do e-mail, telefone e o endereço do blog – eram distribuídos por mim nos sebos da Rua Augusta e arredores. No ano seguinte, criei um site pessoal e passei a perceber que a divulgação pelo Facebook se tornava cada vez mais indispensável. No entanto, isso tudo não teria o efeito que eu planejava se as aulas não tivessem crescido em qualidade, pois era isso que, decisivamente, influenciava na divulgação feita pelos próprios participantes.
7.
No início de 2011, tive conhecimento da existência de um espaço cultural chamado Mundo Pensante, que ficava nos fundos de uma escola de astrologia, no bairro do Paraíso. Era ainda um embrião daquilo que veio a se tornar quase dois anos depois. Combinei uma conversa com o seu idealizador, o Paulo Papaleo. Com uma objetividade e confiança que me fez lembrar do encontro com a Valéria Bernardes, agendamos a nossa primeira palestra gratuita para o dia 8 de abril de 2011, às 20h, com o tema Mente, corpo e afetos em Spinoza. Como tivemos um bom público na palestra, percebemos que a parceria poderia se fortalecer. Depois vieram os cursos durante todo aquele ano e também no ano seguinte, em 2012. Em dezembro daquele mesmo ano, o Mundo Pensante passou a ter uma sede própria, num galpão no bairro do Bixiga.
Definitivamente, aquele galpão era um espaço completamente sui generis para ministrar aulas de filosofia. Absolutamente, não tinha nada que se assemelhava com as salas de aula das escolas e universidades. A pessoa que ia assistir à aula entrava por uma pequena porta, seguia por um curto caminho pouco iluminado, puxava uma cortina preta para entrar no salão, via um pequeno palco e muitos quadros na parede, ao mesmo tempo em que ouvia uma música (geralmente jazz) tocando baixinho. Além do mais, havia um bar onde o público podia beber um vinho ou uma cerveja enquanto assistia à aula. Como a proposta do Mundo Pensante era, principalmente, oferecer eventos musicais (apesar do nome!), havia toda uma estrutura para pequenos shows, com palco, iluminação, microfone, bar. Com um nome desse, era fácil alguém associar aquele espaço aos cursos de filosofia. Todavia, ao chegar lá, a última coisa que a pessoa poderia associar era a uma aula de filosofia!
Eu achava tudo aquilo mágico, pois destruía completamente a percepção do que é um espaço “adequado” para um evento de filosofia. Se é curso livre, então não tem avaliação nem pré-requisito para participar. Junte isso com um espaço feito para pequenos shows, com um professor jovem que ministra aulas sobre Spinoza e que, além disso, não é formado em filosofia na universidade! Vai dar uma confusão dos diabos em muita gente!... O público era extremamente heterogêneo, os frequentadores iam de jovens a idosos, das mais diversas especialidades. Nos eventos em que havia um público maior, eu subia no palco, ajeitava a iluminação colorida, sentava na cadeira, pegava o microfone e começava a falar. Cada aula sempre foi, para mim, em maior ou menor grau, uma experiência de despersonalização, mas naquele ambiente do Mundo Pensante a viagem da despersonalização era realmente muito diferente. Terminava a aula, o jazz voltava a sair das caixas de som, enquanto eu conversava com um público satisfeito, não somente com o conteúdo do que foi exposto, mas com aquela combinação única entre uma aula de filosofia e um ambiente artístico. Era comum as conversas se estenderem para fora dali, em algum bar da região.... No encerramento de um dos cursos sobre Nietzsche, uma senhora se dirigiu a mim e disse que vinha, juntamente com mais duas pessoas, do interior de São Paulo (Joanópolis), apenas para assistir às aulas. Eu fiquei extremamente agradecido e, ao mesmo tempo, com um sentimento de grande responsabilidade, por enorme respeito àquela senhora. “Cara”, falei para mim, “em uma situação assim, a aula tem que ser a melhor da história do universo!”.
Àquela altura, eu conseguia me manter financeiramente com o meu trabalho. As turmas nunca haviam sido tão grandes, a programação nunca havia sido tão bem divulgada (os cartões passaram a ser impressos em gráfica), as aulas nunca haviam sido tão bem preparadas, eu nunca havia me sentido tão bem ao trabalhar como professor. Era um caminho sem volta, era dali para adiante – era, enfim, uma alegria obtida com o trabalho que, de modo algum, poderia se aproximar daquilo que eu vivi em outra época como trabalhador assalariado...
8.
Durante dez anos, de 1997 a 2007, passei pela experiência do trabalho irracional, isto é, do sentido absolutamente estúpido do trabalho, com suas tarefas escravizantes e volúpias estupidificantes. Saía do meu apartamento em Guarulhos, tomava um ônibus (ou uma lotação) que ia para a Estação Armênia do Metrô, em São Paulo, e chegava ao local de trabalho. Em geral, o trajeto demorava em torno de uma hora e meia, mas variava conforme o endereço da empresa em que eu era funcionário. Eu tinha uma preocupação de sempre tentar compensar o tempo perdido no transporte, na ida e na volta, com leituras.
O início da desgraça aconteceu quando eu tinha 19 anos – sem ter a mínima noção do que é o trabalho irracional – em uma prestadora de serviços para a Xerox do Brasil. No início, eu e mais alguns jovens éramos “prospectores”: o motorista da empresa nos levava em uma van para algumas regiões de São Bernardo, São Caetano, Santo André e Diadema, para fazermos pesquisas em microempresas. Vestindo uma camiseta da Xerox e segurando uma prancheta onde havia uma folha de pesquisa para ser preenchida, eu entrava nos estabelecimentos comerciais e perguntava para a funcionária “A senhora tem dois minutos para responder uma pesquisa?”. Havia uma meta diária de pesquisas que, dependendo da região, não era difícil de ser atingida. Foi um período que durou pouco, por volta de três meses, mas que me ajudou a perder a inibição de falar com gente desconhecida, de ir para lugares desconhecidos, de poder almoçar em lugares desconhecidos. Ao relembrar aquele período, tenho certeza de que foi o único trabalho assalariado em que eu me senti “bem”, desde que comparado com os outros que surgiram depois...
Com o fim daquele projeto de prospecção, todo o grupo de jovens foi promovido ao departamento de telemarketing. Ligávamos aos estabelecimentos para agendar a visita de um representante da Xerox que ia tentar vender algum produto da empresa. Pela primeira vez, eu usava camisa social e gravata. No início, estava empolgado pela “promoção”, pois não precisava mais andar horas debaixo do sol, de entrar nos estabelecimentos e incomodar as pessoas com perguntas do tipo “Você tem máquina copiadora?”, “Qual é a marca?”, “Está satisfeita com ela?”. Agora, eu estava em um confortável escritório com ar condicionado, com fácil acesso a banheiro e bebedor (imagine o problema que eu tinha com isso no trabalho anterior...), localizado na famosa Av. Paulista.
No entanto, a empolgação não durou muito tempo. Além de começar a sentir por tudo aquilo um tédio crescente, eu sentava ao lado de um funcionário mais antigo que, sem papas na língua, me falava sobre todas as suas insatisfações com a empresa – insatisfações que, na época, eu pensava serem realmente justas! Havia alguns funcionários que se reuniam no banheiro para desabafar os seus desgostos. Eram sessões de terapia em grupo! Em pouco tempo, também passei a fazer parte daquelas reuniões. Evidentemente, a supervisora não gostava daqueles encontros informais e batia na porta do banheiro, desesperada para tentar nos fazer voltar ao trabalho, já que as metas ainda não haviam sido alcançadas. Aos poucos, minha preocupação com a aparência foi diminuindo, não queria mais comprar camisas, gravatas e calças – afinal, qual era o sentido de vestir aquelas roupas se a nossa comunicação com os clientes era exclusivamente pelo telefone? No final do expediente, eu tirava a gravata com alívio, guardava-a no armário, e íamos aos happy hours de sexta-feira à noite para nos sentirmos relaxados após mais uma semana de tensão. Consequentemente, o meu desempenho foi caindo, caindo, até eu ser orgulhosamente demitido em setembro de 1998. Naquela época eu já havia encontrado a filosofia que, sem dúvida, me deu mais coragem para alcançar a minha meta, que era a de ser o pior funcionário do departamento...
Como eu precisava de uma renda para continuar a pagar a mensalidade da faculdade, não encontrei outra opção a não ser voltar ao mercado de trabalho e vender uma parte do meu tempo, da minha energia e do meu intelecto para um empresário. Em fevereiro de 1999, fui contratado por uma prestadora de serviços da Porto Seguro. Aquele trabalho no departamento de cobrança foi, com certeza, o pior de todos que eu tive. Manter a saúde mental naquele lugar foi uma prova incontestável do limite que eu era capaz de suportar nas relações com pessoas completamente submetidas às sandices da organização. Sou eternamente grato ao meu esquecimento por não conseguir relatar, em detalhes, a que ponto chegam as ações dos Recursos Humanos para manter os pobres funcionários integrados àquele sistema demente. Todavia, existe uma situação daquele período que eu não esqueci e que, por causa do seu ato simbólico, merece ser mencionada aqui.
Na ocasião das festividades de final de ano promovida pela empresa, fomos conduzidos a um ônibus que nos levaria a um espaço onde haveria uma apresentação musical da Elba Ramalho – era um evento exclusivo para os funcionários da empresa. A ordem que recebemos era a de que deveríamos vestir, já dentro do ônibus, uma camiseta branca, com o logo da Porto Seguro, que tinha sido distribuída a todos os departamentos. A caminho do ônibus, segurando um pacote de plástico que continha a camiseta, eu disse para mim: “Eu não vou vestir isso!”. Dentro do ônibus, as pessoas perguntavam quando eu iria vesti-la, e eu enrolava, dizia que faria aquilo quando chegássemos ao local do evento. Chegamos lá, descemos do ônibus, entramos no salão, o show começa, o público (vestido com a camiseta branca da instituição) empolgadíssimo e agradecido à Porto Seguro por aquele momento i-nes-que-cí-vel, e eu ali, segurando um copo de cerveja, às vezes circulando entre o público, às vezes parado em um canto, às vezes conversando com alguém, sem vestir a sagrada camiseta... Realmente não me lembro qual foi o destino dela, se eu a abandonei no ônibus ou se foi jogada no lixo. O fato é que não vi ninguém naquele ambiente que, além de mim, não estava vestido com a camiseta branca – o que, certamente, despertou a atenção de todo mundo. Como eu não suportava mais aquele pesadelo, esse foi o meu derradeiro ato de insatisfação, culminando no meu pedido de demissão no início de 2000 – a situação era tão ruim que eu não tinha a menor paciência de esperar que fosse demitido. Quando entrei na sala da gerente e falei da minha decisão de sumir de lá de uma vez por todas, ela olhou para mim sem nenhuma surpresa e disse: “Já tínhamos percebido que você não estava satisfeito!”.
Pouco tempo depois, fui admitido por uma prestadora de serviços de uma grande empresa de saúde animal, a Merial. Imagine a esquisitice dessa situação: um jovem estudante de Relações Públicas, que estava completamente atraído pela filosofia, atendia por telefone clientes desesperadas porque aplicaram o Frontline nos seus cães e, no entanto, eles continuavam com as pulgas! E isso sem eu nunca ter sequer visto ou usado um Frontline! O meu atendimento seria impossível sem a orientação de uma veterinária do departamento que me falava sobre o procedimento que deveria ser seguido em um caso desse tipo: “Pergunte à cliente se ela aplicou o produto na nuca do cão”, “Pergunte se ela, por engano, esfregou o produto com as mãos”, “Pergunte se o piso da casa dela é de taco, porque tem que cuidar também do ambiente, etc.”... Apesar de tudo, eu tinha alguma simpatia por aquele emprego, pois ele não exigia muito do meu tempo e energia, além do ambiente ser quase todo de jovens como eu. Sua localização, perto do Largo do Arouche, também me agradava: eu saía do prédio, tomava um café, visitava uma charmosa livraria que havia ali perto. Sempre me senti bem no centro de São Paulo... Após alguns meses da contratação do trabalho “mais suave” que eu tive, fui demitido por motivo de “reestruturação da empresa”.
9.
A cada nova demissão, retornava o problema sobre como continuar a pagar a mensalidade da faculdade, além de, é claro, manter o meu sustento. E a resposta continuava a ser a mesma: tentar encontrar um trabalho assalariado. Evidentemente, não aceitava qualquer um que aparecesse. Além do valor do salário, a condição principal era o tempo diário que o emprego exigiria: com exceção do trabalho para a Porto Seguro, os trabalhos para a Xerox e Merial eram de seis horas diárias. Essa condição era essencial para que eu pudesse usar o restante do dia para, enfim, poder viver. E foi assim que, em fevereiro de 2001, aconteceu a minha próxima contratação, desta vez não por uma prestadora de serviços, mas pelo banco Itaú, para trabalhar no departamento Bankfone. Assim como nos outros empregos, eu não tinha nenhuma esperança de seguir carreira na instituição, visto que meu objetivo naquela época era muito claro: terminar a graduação. Em 2002, o objetivo se ampliou: além de concluir a graduação, eu também queria fazer um mestrado para me tornar um professor universitário. Então, em poucos anos, eu poderia dizer bye bye ao banco... Porém, no ano seguinte, o “projeto mestrado” foi adiado e eu continuava ali, atendendo clientes que queriam pagar uma conta de luz, saber o saldo da poupança ou fazer uma reclamação do gerente de alguma agência bancária, e ainda não tinha a menor ideia de como eu poderia trabalhar como professor sem precisar ir atrás de um diploma universitário.
De uma coisa, ao menos, eu não posso me queixar em todos aqueles anos de trabalhador assalariado: não tenho dúvida de que foi um período de grande aprendizado sobre como as pessoas facilmente desejam o poder. Como o meu emprego no Itaú foi o que durou mais tempo, tive a excelente oportunidade de presenciar com perspicácia os mais diversos mecanismos utilizados pela instituição para seduzir os seus funcionários. Alguns detalhes ridículos quase sempre funcionavam para capturar aqueles estupidificados trabalhadores. O sujeito que era promovido para supervisor trabalhava algumas horas a mais do que eu, recebia uma pressão muito maior pelo seu desempenho, tinha que participar de entediantes reuniões com seus superiores, e recebia um salário que, comparado com o da sua equipe, tinha uma diferença quase insignificante. Apesar disso, quase todo mundo sonhava em ser supervisor – e dali para mais! Como se explica isso? Ora, quem era promovido a supervisor tinha um crachá de cor diferente, utilizava um microcomputador mais avançado, tinha que vestir roupa social, tinha que dar ordens e era bajulado todos os dias pela sua equipe – e isso tudo, aos olhos dos outros, só podia ser muito bom! Cansei de ensinar o meu trabalho para os recém-contratados e ver que, depois de um ano, alguns deles se tornaram supervisores, ou então, que haviam “crescido na carreira” em outros departamentos do banco, enquanto eu continuava ali, na mesma função, “sem ambição”.
Para suportar tudo isso, só com filosofia aplicada na veia! Levava uns livros para o trabalho e tentava lê-los onde fosse possível. Depois de um tempo, aquilo se tornou um ritual: eu chegava na minha mesa de trabalho, registrava o ponto de entrada, atendia cinco ou seis ligações, pegava um livro, saía do departamento, descia pelo elevador, procurava um espaço para sentar e ler, ou então, saía do prédio e lia em um parque que havia em frente à entrada do Itaú. Depois de um tempo de leitura, eu subia novamente para o departamento e registrava a minha saída para o intervalo do lanche. Comia alguma coisa, depois registrava novamente a minha entrada, descia pelo elevador e voltava para a minha sagrada leitura. Os registros comprovavam que eu “trabalhava” e serviam para mitigar as constantes ameaças de demissão por justa causa. Livros como Genealogia da moral e Ecce Homo foram completamente lidos naquele ritual. Estava explícito para todo mundo que eu forçava a minha demissão, já que fazia parte do meu planejamento ser demitido para arriscar a ser professor com algum chão, isto é, com alguma base financeira que somente o valor que eu receberia da demissão poderia me trazer. Em 2006, meu trabalho como professor estava apenas no início e era impossível depender dele para sobreviver. Fiz alguns cálculos e constatei que com o dinheiro da demissão eu conseguiria me manter por uns três anos, o que seria suficiente para mergulhar nos estudos (pela primeira vez, eu teria todo o tempo do dia para mim), além de ampliar, gradualmente, as parcerias com os cursos. A demissão demorou muito mais do que eu esperava, mas finalmente ocorreu em agosto de 2007. A paciente transição deu certo: alguns anos depois e até hoje, passei a ter uma renda que vem exclusivamente do meu trabalho filosófico.
10.
Trata-se de um trabalho que tem dois princípios: 1 - transmitir ideias que podem ser libertadoras para algumas pessoas; 2 - necessidade de explorar, constantemente, as obras de alguns filósofos. A renda que serve para a minha conservação orgânica, além, é claro, do acesso ao material necessário para exercer a minha tarefa (principalmente livros), é resultado de um trabalho feito com paixão e autodisciplina.
Ministro aulas somente sobre pensadores que eu amo, o que certamente torna as aulas mais intensas. As ideias, quando são transmitidas com emoção, podem operar grandes transformações na existência de alguém. É por isso que é impossível dedicar o meu tempo de estudos para organizar cursos que servem apenas para atender uma demanda de mercado, com abordagens superficiais de autores e temas que estão na “moda”. Todavia, não há “moda” para ideias revolucionárias e intempestivas! As ideias devem ser colocadas em movimento, apropriadas e transformadas por nós, pois elas nos ajudam a enfrentar os perigos de uma época – e não para serem absorvidas por interesses mesquinhos. Afinal de contas, para que serve a filosofia? Penso que, talvez, seja melhor colocarmos uma outra pergunta: para que não serve a filosofia? Ela não serve para chancelar os valores que aí estão, assim como ela não deve estar a serviço da reprodução das existências tornadas medíocres que sustentam esse circo de horrores. A filosofia é subversiva e, exatamente por isso, exige, de algum modo, uma postura subversiva se quisermos viver filosoficamente. Entretanto, de que filosofia estou falando aqui? Seguramente, não é uma filosofia transcendente, cristã, dogmática, de Estado, ao contrário, é uma filosofia da vida, da natureza, da potência imanente do corpo e do pensamento.
Porém, a emoção deve estar acompanhada de técnica, isto é, o rigor necessário para a exposição da obra de um pensador. Isso exige, sem dúvida, muitas leituras, muitas pesquisas. Para isso, a internet provou-me ser indispensável, visto que ela possibilita o acesso a artigos, dissertações, teses e vídeos com uma facilidade jamais vista em outras épocas. A respeito dos filósofos que eu amo, há ótimos pesquisadores acadêmicos, sejam brasileiros ou estrangeiros, essenciais para que as minhas aulas tenham um nível crescente de qualidade. Eu preciso dos acadêmicos, eu me alimento deles, apesar de alguns serem excessivamente vaidosos... É necessário ser um estudante frequente, não existe o “já conheço tal ou tal autor”. Como professor, percebi que aprendemos ainda mais sobre a obra de um filósofo quando temos que transmiti-la aos outros com o máximo de técnica – aliada, é claro, à emoção e também ao ritmo.
Na preparação das aulas eu faço um roteiro, pontuando as ideias mais importantes de um determinado tema, mas sem me apegar estritamente a ele, para que o acaso também participe do que é dito. Como o roteiro não é lido, a exposição exige um alto grau de concentração para seguir o fio teórico da obra do autor. Para mim, isso seria impossível se não houvesse o esquecimento de mim mesmo, isto é, se eu não deixasse de lado o “eu, Amauri, homem, brasileiro, etc.” para deixar fluir o discurso impessoal, sem me preocupar com o julgamento alheio. Tento também ter o cuidado com a dicção e a entonação, além dos gestos, para ajudar o ouvinte a se envolver no pensamento do autor. Com o tempo, percebi que dividir a aula em uma parte expositiva e a outra parte reservada às perguntas do público era absolutamente necessário para manter a concentração, não somente a minha, mas também a dos ouvintes, pois uma interrupção do fluxo discursivo impede a higiene mental que eu busco realizar em cada aula4. No início do meu trabalho de professor, eu ainda não utilizava esse método de divisão das aulas, e as interrupções eram frequentes. Ao ouvir atentamente as gravações das aulas, eu constatava que as perguntas feitas durante a minha exposição impediam o ritmo que é indispensável para que o conteúdo seja, primeiramente, sentido pelo ouvinte. Penso que o mais importante é, inicialmente, o encontro afetivo com o fluxo de ideias – a compreensão racional vem depois da sensação. É em razão disso que, nesse sentido, uma aula deve se aproximar da música.
O meu trabalho ocorre quase sempre diariamente, sem me apegar rigidamente à divisão social do tempo em “trabalhar de segunda a sexta”, “dia de happy hour” e “descansar no fim de semana e no feriado”. A experiência com o tempo passa a ser muito melhor quando nós mesmos organizamos a divisão do dia e da semana: após uns 70 minutos de apenas dez páginas lidas e relidas de um livro de filosofia, tenho a sensação de um ritmo de tempo completamente distinto de quando eu trabalhava dentro de uma empresa – ali, definitivamente, havia a sensação de que o tempo não passava! Para auxiliar a atenção na leitura do texto, um abafador de ruído colocado sobre as orelhas se tornou um instrumento completamente indispensável para mim. É um trabalho cujos efeitos são sentidos não somente no meu modo de viver, mas também no nível das aulas. Um progresso que ocorre lentamente, que é notado posteriormente no meu comportamento diário e também quando eu escuto as gravações das aulas – quando eu as escuto, além de constatar a minha evolução, também costumo ser crítico ao anotar passagens que devem ser melhoradas para os cursos futuros (dicção, entonação, ritmo, roteiro, rigor conceitual).
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É necessário reconhecer que esse cultivo da paciência é, sem dúvida, atualmente cada vez mais difícil, em razão da hiperconectividade social operada pela sistematização confinante. Se é absolutamente necessário ter tempo e paciência para um trabalho cuja obra está sempre em processo, não vejo outra opção, no que concerne ao uso das redes sociais da internet, a não ser assumir uma desconectividade seletiva. Sublinho, como aprendizado, apenas duas atitudes que ajudaram a preservar a minha saúde: 1 - evitar, ao máximo, responder aos comentários que fazem nas minhas publicações no Facebook e Instagram; 2 - desabilitar a opção dos comentários nos meus vídeos no YouTube. Essas e outras atitudes aparentemente simples evitaram o direcionamento da minha atenção para comentários que, quantitativamente, não são possíveis de serem todos lidos, e qualitativamente, em sua maioria, são irrelevantes para o sentido do meu trabalho. Ao dizer isso não quero, de modo algum, passar a imagem de alguém arrogante, pelo contrário, nos primeiros anos que eu usei o Facebook, por exemplo, sempre tentei fazer daquela plataforma um ambiente de aprendizagem, de interação fértil, o que foi possível apenas em raras ocasiões. A experiência mostrou-me que eu dedicava um tempo desnecessário para explicar algo que somente em outro formato seria possível, em um texto maior e melhor elaborado, ou então, em uma exposição sistemática de um curso.
Em busca da maximização dos lucros, as redes sociais precisam sugar o nosso tempo, energia e intelecto, de modo a nos tornar seus trabalhadores, conectados durante quase o dia inteiro, sem, entretanto, recebermos um salário. Não há dúvida que o formato das redes sociais não incentiva a leitura paciente e a audição atenta, o que produz consequências nocivas para o intelecto dos indivíduos, uma vez que eles se limitam, em grande parte, a expressar excessivamente opiniões apressadas e muitas vezes carregadas de ódio. Portanto, o modo como as ideias são expostas nas redes sociais pode estimular a vaidade e a soberba de quem “possui” um saber, sem, de fato, estimular uma transfiguração nos seus leitores e ouvintes.
Sentir-se coagido a publicar frequentemente qualquer “novidade” para obter o engajamento do público, ou então, a responder todos os comentários (ou a maioria deles) para simular que se está atento às manifestações dos leitores, são práticas que podem resultar no aumento dos seguidores em um tempo até curto, porém, a hiperconectividade nos torna estúpidos, inférteis e inofensivos no interior desse grande Cativeiro. Praticamente não se encontra mais nenhuma tranquilidade nas pessoas, quase tudo é feito com pressa, tem gente que se esforça para ter mil seguidores de um dia para o outro, que faz quase qualquer absurdo para se tornar um empreendedor digital de sucesso.
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A minha grande interação ocorre em outro lugar, nas aulas presenciais e, principalmente, online. Ali existe a experiência de outros ritmos de tempo: dúvidas que produzem pensamentos, comentários que não são feitos apressadamente, sugestões de obras de filósofos, cientistas, artistas. Sinto que me aprimoro constantemente nessas interações, o que torna cada aula um aprendizado também para mim. Mesmo que o tema de uma aula, ou de um curso, seja, na sua maior parte, familiar, percebo que existe sempre uma nova região teórica a ser explorada, e a imprevisibilidade daquilo que o público expõe com suas dúvidas, comentários e sugestões leva-me à autossuperação. Além disso, sem um diploma que “comprovaria” o meu saber, isto é, sem a necessidade de defender uma posição de “mestre” ou de “doutor”, coloco-me tranquilamente em situações onde eu digo ao público: “Não sei, posso pesquisar e lhe respondo depois”. Além disso, a formação de novas turmas, o que atualmente ocorre quase todos os meses, estimula esse processo de superação autodidática e faz com que um novo curso, mesmo que tenha um tema repetitivo, seja inevitavelmente superior ao antigo – os cursos sofrem verdadeiras atualizações que os tornam sempre melhores.
O fato de eu não ter um salário fixo se tornou um estímulo adicional para que as aulas tenham um alto nível de rigor e intensidade. O respeito ao público é fundamental. A pessoa pagou pelo curso, foi à aula de metrô, ônibus, enfrentou um trânsito carregado, poderia ter desistido, mas persistiu, porque ela sente que alguma coisa ali, na aula, lhe atrai. Diante dos muitos obstáculos que impedem alguém de participar de um curso livre (problemas econômicos, de locomoção, de horário, de prioridades profissionais, etc.), é simplesmente ultrajante ministrar uma aula burocrática, entediante, apenas pelo “cumprimento do dever”. Certa vez, no Mundo Pensante, houve uma forte chuva poucas horas antes de a aula começar. Era difícil chegar ao local de automóvel e ônibus. Eu mesmo fui a pé e cheguei lá todo molhado. “Hoje vai aparecer meia dúzia de gente!”, pensei comigo. Entretanto, para minha surpresa, tivemos um público muito maior do que eu esperava. Sem pensar duas vezes, peguei o microfone e, antes de começar a expor o conteúdo da aula, fiz questão de afirmar o meu compromisso com aquelas pessoas: “Hoje vai ter que ser a melhor aula do ano!”.
Como não sentir tédio em ministrar cursos com temas que se repetiram durante todos esses anos? Afinal, nunca tive o sentimento de repulsa que poderia me levar a dizer: “Lá vou eu para mais uma aula entediante...”. A minha superação autodidática, como disse, é uma resposta para essa pergunta... Porém, é uma resposta ainda provisória. De modo mais determinante, o que me faz perseverar nesse trabalho é aquilo que denominei de certeza alegre, ou seja, um “sentimento da certeza” que experimentei no final de 20125. Foi a certeza alegre que me fez abandonar definitivamente o “projeto mestrado”, foi ela que me fez ver a obra como processo inacabado e não como objetivo – e a felicidade que nasce dessa visão é necessariamente compartilhada6. Não tenho a menor dúvida de que a transfiguração operada por ela é o meu melhor antídoto contra os embustes sedutores do poder.
13.
As pessoas que se inscrevem nos cursos não apenas me ajudam financeiramente, mas também, indiretamente, financiam minhas publicações. Atualmente, o dinheiro obtido das vendas dos meus livros serve apenas para tentar pagar as despesas com as publicações. Isso significa que os participantes dos cursos tornam possível que eu consiga usar meu tempo de modo prolífico com pesquisas, organização e divulgação dos cursos, mas também na produção e publicação dos escritos – tudo isso em uma sociedade da hiperconectividade que nos rouba o tempo necessário para realizar essas coisas... O resultado é que, graças aos participantes, eu consigo manter a autonomia na organização dos cursos e na publicação dos livros. Entretanto, ao contrário dos cursos, a distribuição e divulgação dos meus livros é realmente muito precária – apesar disso, independentemente da quantidade de leitores, não me falta o sentimento de felicidade por ser capaz de compartilhar os meus pensamentos.
A minha relação com a escrita vem desde a adolescência. No período pré-faculdade, eu percebia que tinha alguma facilidade com a escrita e sentia que poderia tentar expressar algum pensamento crítico – apenas esboçava algumas palavras no papel, mas na maioria das vezes não tinha a menor ideia do que dizer. Lembro-me de um raro momento em que um bom texto veio à luz, na ocasião de um exercício de redação no ensino secundário. O título era Sangue nos gramados, tratava-se de um conteúdo crítico à violência entre torcidas de futebol, especialmente a ocorrida no gramado do Estádio do Pacaembu, em 1995. A professora gostou muito, inclusive leu o texto na sala de aula... Fiquei um pouco constrangido diante dos colegas por causa disso... Porém, senti-me confiante em praticar a escrita.
Sinto que a minha relação com a escrita é também uma tentativa de me manter saudável. Por isso que, antes de tudo, eu escrevo para mim. Quando eu escrevi sobre outros filósofos, escrevi para que eu mesmo pudesse compreender o que eles pensaram. Com os textos prontos e a minha mente fortalecida, eles foram, enfim, publicados para que outras pessoas pudessem também se alegrar com a filosofia deles. Não há dúvida de que são estudos filosóficos que exigem rigor na exposição conceitual. Entretanto, como são livros introdutórios, não podem ser maçantes para o leitor que não está habituado com o vocabulário de cada um daqueles pensadores – a publicação de uma nova edição daqueles livros tem exatamente o objetivo de aperfeiçoar essa proposta.
Em contrapartida, os aforismos me agradam de outro modo. São escritos cujas ideias iniciais surgiram em caminhadas, banhos, restaurantes, bares, parques, leituras, etc. Eu anotava as ideias em algum lugar para, posteriormente, organizá-las em um texto mais ou menos curto. Se nos estudos filosóficos o âmago daqueles escritos é a compreensão do sistema de um pensador, nos aforismos é a exposição de conceitos filosóficos surgidos em mim, organizada de modo aparentemente assistemático – todavia, um sistema filosófico que está em processo pode ser extraído daqueles textos. A compreensão de um conceito exige, necessariamente, a compreensão de outros que estão relacionados a ele: o conceito de Sempre, por exemplo, vai exigir a compreensão dos conceitos de Fragmentofluxo e de Cosmoindivíduo, de modo que o leitor sentirá um esforço mental para apreender o conjunto conceitual que está disperso nos aforismos. Ao mesmo tempo, a leitura de um aforismo, em qualquer ordem, estimulará o pensamento do leitor a ir além do texto, de modo que ele poderá levá-lo para lugares inexplorados, independentemente de ter compreendido, ou não, o sistema filosófico. Com relação aos ensaios, considero-os um discurso sem sujeito, cujo conteúdo não se refere a um “eu pessoal”, mas a um caso singular impessoal. O primeiro deles, o Discurso do trabalho irracional, é uma prova disso: tentei dar vazão, por meio de palavras, ao sentimento quase insuportável de sofrer uma violência diária na época em que eu era um trabalhador assalariado.
No conjunto dos meus escritos, parece-me possível extrair o seguinte esquema: 1 - os estudos filosóficos se referem a um “ele” e “ela”: aquilo que ele, Spinoza, pensou, ou então, o que ela, Estamira, pensou; 2 - os aforismos se referem a um “nós”: aquilo que eles e elas (autores, artistas, mas também meios sociais, econômicos, etc.), transmutados, pensaram por meu intermédio; 3 - os ensaios se referem a um “eu anônimo”: aquilo que foi vivido por um caso singular impessoal. Certamente, como existe um misto nisso tudo (um quê de caso singular nos aforismos, um quê de “nós” nos estudos...), esse esquema tenta apenas salientar o que é dominante nos diferentes segmentos dos meus escritos.
14.
A apreensão, por meio do pensamento introspectivo7, de que se é um caso singular impessoal, não expressaria a nossa liberdade de não nos submetermos ao poder? Entorpecidos por não viverem conforme as suas tendências exploradoras e criadoras, os indivíduos entristecidos detentores do poder estimulam, em uma velocidade jamais vista, as nossas tendências voluptuosas, com o fim de nos sujeitarmos às suas manipulações. Trata-se de uma submissão que é reproduzida facilmente porque, no exercício de um poder qualquer (seja em uma função de destaque na sociedade ou em um perfil na rede social com muitos likes dos seguidores), nós passamos a ter prazeres efêmeros, tal qual aqueles que nos manipulam, ou seja, aqueles que detêm um poder maior que o nosso. É uma sofisticadíssima sistematização confinante que precisa estimular a vaidade de todos, pois para continuarem obtendo os “benefícios” da submissão (incluindo a submissão dos que precisam submeter os outros), é necessário que continuem a acreditar que são os mesmos a cada instante.
Diante disso, ser alguém pouco conhecido é uma grande conquista dentro de um sistema que facilmente nos fornece visibilidade e empoderamento – desde, é claro, que participemos do jogo imundo que o sustenta. Ao nos dar poder e autoridade, o Cativeiro nos estupidifica ao mesmo tempo que, para continuarmos a ter o acesso aos prazeres, somos impelidos a estupidificar os outros, reproduzindo, desse modo, esse sistema totalmente insano. O que chamamos de simplicidade impessoal não tem outro sentido do que este: escapar do mecanismo entorpecimento-volúpia-vaidade e ingressar no mecanismo desejo-volúpia-resistência e, finalmente, no impulso-certeza...8
Por fim, a introspecção também não poderia indicar um outro sentido para a política e para uma outra esquerda? Parece-me indispensável adotar uma postura não binária, já que o binarismo é uma ferramenta de poder que alimenta o ressentimento dos indivíduos. Vejamos alguns exemplos: 1 - ao me posicionar contrariamente às tentativas de um golpe de Estado articuladas insidiosamente pelas redes sociais da internet, não me torno um apoiador direto e incontestável de um governo que é, segundo denominei, de esquerda inferior e subordinada ao capital. Essa mesma esquerda pode ser utilizada, estrategicamente, como um instrumento às práticas de uma democracia realmente ativa, que é efetuada, principalmente, pelos movimentos sociais; 2 - ao criticar a inclusão social democrática para o mesmo modelo de ensino e de trabalho que aliena as pessoas, não me torno um simpatizante do neoliberalismo e defensor dos méritos do “esforço pessoal” para que alguém chegue, um dia, ao “sucesso” profissional e pessoal; 3 - ao afirmar que o Estado envenena o que denominei macromundo, não me coloco imediatamente em uma posição anárquica de demolição do seu sistema doente e adoecedor, pois o Estado não é um ente metafísico “maligno” – assim como o capital, o Estado é fundamental para a conservação de uma massa de indivíduos que estão entristecidos. Em razão disso, não seria um problema urgente combater diretamente o entristecimento de que o Estado e o capital dependem?9
Todavia, o pensamento binário tem por hábito condenar uma ação contraditória a partir do seu grosseiro critério do “concordo-discordo”, “certo-errado”, “bem-mal”, porque é incapaz de compreender que a realidade é complexa, com uma multiplicidade de perspectivas. Como escapar dessa armadilha do poder que prolifera o ódio, a inveja e outros afetos nocivos? Não vejo outra opção a não ser ampliar as contradições... Existem pessoas que eu somente acompanho pelos livros publicados (como, por exemplo, os pesquisadores acadêmicos), e não por meio de um perfil na rede social, pois o que elas publicam por lá pouco me interessa; por outro lado, algumas pessoas me interessam muito mais nas redes sociais do que aquilo que elas mesmas publicaram em livros ou em colunas de opinião; ou ainda, existem aquelas que eu acompanho apenas em vídeos, sem, entretanto, interessar-me pelo que elas opinam em outro lugar... É possível perceber que existem múltiplos modos de nos relacionarmos com pessoas e coisas para sentirmos alguma ressonância – isso é muito diferente de exigir que elas tenham que ser do modo como queremos10.
Como professor, sempre tento fazer com que a emoção esteja presente nas aulas, independentemente da diversidade dos ouvintes. O conteúdo é, essencialmente, o mesmo para todos os públicos. Se a pessoa está lá, ouvindo a aula, ela pode senti-la e ser estimulada a pensar criticamente e criativamente, porque suas tendências exploradoras estão lá – tais tendências podem se tornar, enfim, dominantes, sendo que para isso foi necessário apenas um estímulo que uma aula, por exemplo, pode proporcionar. Por outro lado, se partirmos do modelo do que seria um “bom” ouvinte de uma aula de filosofia, inevitavelmente erguemos um muro que pode ser muito cômodo para quem ministra uma aula, mas, com certeza, é péssimo para uma sociedade em suas múltiplas perspectivas. Até hoje me lembro da pergunta feita por um jovem, durante uma aula em uma escola ocupada pelos secundaristas: “O que é o Estado?”. Nunca me haviam perguntado isso! Talvez fosse realmente mais fácil que essa pergunta pudesse surgir daquele jovem de 15 ou 16 anos, e não de alguém mais velho, que já tem uma opinião sobre o que é o Estado (é o governo, ou o exército, ou a burocracia...). Se aquele jovem estivesse habituado à violência policial, é provável que ele mesmo respondesse: “O Estado é a polícia!”... Com o tempo, eu notei que as questões e as intervenções nas aulas surgiam de múltiplas perspectivas: a impressão da aula produzida no ouvinte, transposta em um comentário ou em uma pergunta, modificava-me, fazia-me mudar de perspectiva, estimulava-me a pensar, em suma, mantinha-me longe do binarismo... E é disso que eu preciso para continuar a viver de modo fecundo...
Amauri Ferreira, Junho de 2022
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NOTAS
1 Quase vinte anos depois, denominei esse sistema de confinante e também de Cativeiro: “Chamamos de sistematização confinante a organização que decorre da prolongada configuração das nossas tendências voluptuosas, conservando, a todo custo, a configuração que nos mantém carentes de tudo” (Simplicidade impessoal, aforismo Confinante).
2 Simplicidade impessoal, aforismo Afetante: “Para estimular os nossos desejos reprimidos é indispensável uma experiência de tempo que nos desorganiza, pois é lá, no tempo, que existe fluidez, composição, contemplação, ressonâncias efetuadas com novos microamigos, microlivros, microcanções, microaulas, micromovimentos sociais”.
3 Singularidades criadoras, aforismo Amizade: “Precisamos de gente assim, capaz de doar alguma coisa, de gente que podemos chamar, sem erro, de amigo. Com efeito, coexiste na nossa obra alguma coisa das nossas amizades: um, dois, três amigos, não importa quantos são, desde que saibamos que por meio da amizade tecemos de modo grandioso o nosso próprio destino. Desse modo, esculpimos a nós mesmos lentamente, silenciosamente, amorosamente, agradecidos aos que nos doaram algo valioso”.
4 Singularidades criadoras, aforismo Aula: “Imaginamos um ouvinte que está disposto a fruir uma aula, ou seja, que não pretende ser instruído por ela, mas, ao contrário, ser destruído nos seus mais arraigados hábitos de julgar, de perceber e de pensar – imaginamos, sim, a experiência-aula como banho mental, como problema social de higiene, onde o ouvinte tem seus falsos tormentos suspensos, restando-lhe apenas o que é, no fundo, o essencial: sua natureza modificada como condição para que ocorra uma autêntica regeneração a partir do que ele é capaz de fazer com isso... Mas o que é isso? Tudo o que se passou nele através da experimentação-aula...”
5 Singularidades criadoras, aforismo Certeza: “Mas ocorre, com o passar do tempo, um sentimento de uma estranha certeza, uma certeza incomum, que não se confunde com a certeza objetiva que obtemos pelo raciocínio. É impossível que ela seja deduzida inteligentemente, pois, por se tratar de uma 'persuasão íntima', nos impele a ir adiante, afirmando novos riscos, a não ressentirmos os nossos erros, a nos mantermos confiantes e corajosos no modo de viver que, com muito custo, conseguimos inventar. É uma certeza alegre que nos acompanha quando fazemos aquilo que queremos, do modo que queremos”.
6 Simplicidade impessoal, aforismo Felicidade: “Ao contrário do que muitos acreditam, a felicidade não é um objetivo, não é um estado final, é antes um processo – ou melhor, é a nossa própria obra em processo que nos torna felizes, pois ela, a obra, não visa o autor (pois ele é somente um efeito ilusório), mas tende a tocar os outros humanos (a felicidade compartilhada...)”.
7 Singularidades criadoras, prefácio: “...[a introspecção é] um pensamento que eclode na nossa mente quando percebemos a nossa própria obra em processo e a relacionamos não a um autor que seria causa dela (pois o autor como agente causal não existe), mas sim à tentativa constante da vida para desabrochar nos indivíduos conscientes. […] O pensamento introspectivo é acompanhado de uma certeza alegre...”. E também, no mesmo livro, aforismo Introspecção: “Quem pode ver a obra em processo, por introspecção, é somente o autor. Fora isso, o mundo não pode vê-la em seu processo – quando a vê, vê mal, quando geralmente percebe apenas o que, na obra, permite que algo possa ser associado a alguma coisa já existente e familiar”.
8 Simplicidade impessoal, aforismo Hiperconectividade: “É necessário que a sistematização confinante mantenha os indivíduos ocupados com muitas tarefas que, numa proporção considerável, são realmente desnecessárias, já que são organizadas por meio da proliferação de conexões que os entorpecem. A burocracia do excesso de tarefas é acompanhada do constante estímulos das conexões voluptuosas, do tipo 'passou o efeito, eu quero de novo!', que vão desde o prazer derivado dos lucros obtidos pelos investidores de Wall Street, até os que são oferecidos pela 'indústria do reconhecimento', fisgando as pessoas nos seus mais diversos níveis sociais. Grosso modo, a associação entre esses dois gêneros de conexão, a entorpecedora e a voluptuosa, serve para preservar o reino da estupidez – afinal de contas, esta é a lógica do trabalho irracional, com suas tarefas escravizantes e volúpias estupidificantes... Essa associação atingiu um grau elevadíssimo com as redes sociais da internet, cujo funcionamento permite um nível de conectividade como jamais houve e, igualmente, um desperdício de tempo e um culto ao narcisismo que são incomparáveis com outras épocas”.
9 Simplicidade impessoal, aforismo Agovernismo: “Para que essa ruptura se efetue, é necessário um segundo passo que é determinante, marcado por uma transmutação das políticas de inclusão por meio de uma política de educação libertadora (com muita arte, filosofia, ciência), promovida por movimentos sociais que se servem dos benefícios da inclusão social para, estrategicamente, estimular o pensamento crítico e criador que permite o surgimento de modos de existência que vão na contramão da homogeneização do consumismo (em síntese, este é o foco do que chamamos de democracia ativa)”.
10 Simplicidade impessoal, aforismo Ressonância: “Qualquer um de nós pode encontrar coisas e seres vivos que, embora sejam, num certo sentido, temporariamente estáveis e finitos, nos permitem a experiência da mudança universal. O fato é que algo existente já é um mundo, não importa a forma que tenha – e a nossa vontade de explorar é, para falar profundamente, o desejo de sentirmos a ressonância entre micromundos heterogêneos, o que faz nascer uma aliança temporária que nos torna mais fortes e confiantes na vida. Entretanto, é preciso ter coragem para sentir-se em casa desse outro modo, despersonalizado... O que queremos enfatizar é que existe algo em nós que jamais se torna imundo, pois até as pessoas cujos atos nos envergonham – como as que amam o poder ou que apenas cumprem ordens – são, essencialmente, puras enquanto micromundos, mesmo que ignorem essa realidade. Essa ignorância ocorre porque não podemos sentir a ressonância de qualquer jeito, como se ela pudesse surgir pelo simples fato de encontrarmos alguém ou alguma coisa do modo que esperamos – esta expectativa, que é inerente à consciência pragmática, é sempre frustrante. É preciso, ao contrário, ser capaz de contemplar o ritmo que irresistivelmente nos atrai”.
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Abraços
Tânia Marques