Poluição


Como a sistematização confinante é adjacente a nós, é impossível não sofrermos alguma influência dela, em menor ou maior grau, mesmo quando não acreditamos nos seus valores decadentes, já que a volúpia vem antes da crença: o macroimundo nos suja inevitavelmente... Certos prazeres facilmente obtidos são, talvez, a isca mais usual para nos capturar – mas também a ausência de riscos, ou seja, a previsibilidade, também nos hipnotiza e, uma vez habituados a ela, imaginamos ser impossível vivermos sem os pequenos confortos previsíveis do Cativeiro. Acreditamos que é muito melhor pagar mil prestações, nos endividar à vontade, do que vivermos sem as “incríveis” vantagens da existência normatizada – pois, afinal, imaginamos que as coisas que “todo mundo quer” devem ser boas, e as que “todo mundo não quer” só podem ser ruins... A ideia da nossa própria morte, em vez de fazer valorizar a existência que ganhamos, nos torna ainda mais angustiados com o que ainda não conseguimos realizar dentro dos legítimos limites desse sistema. No lugar da felicidade que sentimos ao ver a obra em processo, queremos uma suposta felicidade que deriva do reconhecimento das nossas ações que reforçam os sagrados valores atuais (sobre isso, o imperador romano Marco Aurélio disse tudo: “Quantos que eram aclamados no passado caíram agora no esquecimento; e quantos, dentre os que aclamavam, também já desapareceram”). Deixamos de ler os escritos que tocariam o nosso coração, que nos levariam à ação, quando permitimos, por indolência, que o excesso de informações do Hoje continue a nos estimular a consumir tudo o que está “acontecendo”, com o objetivo de aliviar a ansiedade que surge quando imaginamos que estamos perdendo informações “importantes”... A nossa insatisfação passa a se dirigir, de modo inevitavelmente ressentido, ao governante, ao dono da empresa, ao cônjuge, aos filhos, ou então, a nós mesmos, pois não nos esforçamos o suficiente para termos “êxito na vida”... Em vez de deixarmos os que acreditam no Cativeiro perderem energia à vontade, nós mesmos desperdiçamo-la para atender às demandas deles (o acesso fácil à comunicação é uma das principais causas disso): desse modo, deixamos de priorizar o nosso próprio desenvolvimento mental – e, sem dúvida, corporal. As relações humanas, em vez de serem afetivas, que alteram a percepção de nós e da sociedade, são mediadas pela fome de acumular as “folhas tristes”, impedindo, desse modo, as nossas metamorfoses... Por causa disso tudo, é necessário cultivarmos, diariamente, certos mecanismos de higienização, para preservarmos a nossa saúde diante de um enorme processo – que ocorre cada vez mais rápido e penetrante – de poluição da percepção, da sensação, do tempo, da mente, do discurso e das ações de uma massa de indivíduos que estão completamente distraídos de si mesmos.
 
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Aforismo publicado no livro Simplicidade Impessoal (2019), de Amauri Ferreira.

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