Saudade


Quem já passou por uma experiência semelhante irá compreender, sem maiores dificuldades, o que queremos chamar de saudade de estar consigo mesmo. Em razão de certas necessidades inegáveis de conservação da existência, nos damos conta, como se um clarão nos atingisse, que estamos abandonados de nós mesmos, da nossa própria companhia, porque fomos tragados por tarefas que, numa perspectiva vitalista, são realmente desnecessárias. Mas isso não significa que estamos impossibilitados de retornar à nossa própria companhia que, de fato, é sinônimo de retorno ao nosso querer mais profundo. Por isso é importante nos atentarmos a fatos que a experiência não para de demonstrar para nós: ora, não é incomum um jovem que se sentia bem ao estar consigo mesmo, cheio de pensamentos subversivos, cuja existência transbordava vitalidade, se tornar, anos depois, um sujeito insosso e covarde, completamente distante de si mesmo por estar entupido de tarefas. Ouçamos sua fala: ele reprova os tempos em que outrora era sonhador, embora tenha feito alguma coisa, movia obstáculos para que tudo não passasse apenas de sonho, mas que efetivamente fizesse passar algo novo no mundo. “Era apenas coisa da idade”, assim diz ele, completamente resignado. A chama que é a invocação à vida, para ele, se apagou... Por ter como matéria um “álbum de retratos”, seu saudosismo é doentio porque está associado a um tempo onde ele “tinha energia”, “que sonhar era possível”, e que, agora, é impossível de retornar. Esta saudade de gente triste não é nem próxima do que aqui chamamos de saudade, porque a nossa saudade não é de um tempo que se foi, mas de um tempo que, a qualquer momento, pode-se retornar. Não se trata de uma saudade de quem olha para trás com melancolia, pelo contrário, ela é uma convocação interior para retornar às tarefas realmente elevadas e que não devem jamais ser esquecidas. Não temos dúvida de que há alguma coisa de grandioso, que palavra alguma pode dar conta, ao sentirmos profundamente essa convocação... Em suma: a saudade de estar consigo mesmo nos coloca na perspectiva de curar, finalmente, a nossa impotência criativa. Ora, exatamente por isso ela deveria ser realmente estimulada e não impedida pelos impulsos de conservação que reforçam temores desnecessários.   

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.



Comentários

Dani,ela disse…
seus textos...
de uma verdade simples que atinge profundamente, e alegra.
sempre me desembaraça, ou embaraça, mas é sempre um bom encontro.

evoé!