Autonomia


Testemunhamos uma concorrência insana entre os indivíduos que foram educados para seguirem rigorosamente as obrigações que são consideradas “boas” – não por eles, certamente, mas pela sociedade em que vivem. Cada um deseja passar por cima dos seus concorrentes, fazer trapaças, chegar aos objetivos já dados de fora: tudo para se sentirem orgulhosos de serem apenas peças de uma máquina destruidora deles mesmos. Como estão impossibilitados de caminhar com as suas próprias pernas, fogem de quem pode ensinar-lhes a conquistar a vida autônoma. Sua covardia torna-se evidente quando sentem que o “bem” moral a que se submetem, mesmo sendo contrário à natureza deles, deve ser conservado por meio de uma luta diária contra os seus instintos. Enquanto estão incapacitados de inventar para si próprios o seu bem, desperdiçam o tempo que seria fundamental para se libertarem do ritmo doentio que é imposto pela organização tirânica da vida humana. Mas existem indivíduos que desejam encontrar os seus mestres, que desejam inventar o seu próprio bem, que desejam lutar pelo seu próprio destino. Nesse processo de evolução, eles deixam de pertencer à imagem habitual que se faz dos homens; tornam-se cada vez menos familiares, passam a ser estranhos, maravilhosamente estranhos, começa a brilhar neles alguma “loucura” que os faz distinguirem-se dos indivíduos “normais” e domesticados. Quem se liga a eles percebe, com o passar do tempo, que existe a impossibilidade de tentar definir o que, na verdade, não para de escapar, de mudar, de ser inventado. O indivíduo autônomo escapa das garras do poder porque é produtor de si próprio, pois, ao se alimentar do fluxo do real, faz os seus disfarces se multiplicarem cada vez mais. Sua multiplicidade de estilos, de vozes, de gestos, esse ator encarnado, exprime a força da vida que, finalmente, no meio de tanto ódio ao seu redor, tornou-se madura, feliz, capaz de dar frutos, de ensinar aos outros a amar cada momento vivido. Mais do que nunca, a nossa época precisa de indivíduos assim, mesmo que os que servem aos interesses das instituições continuem a se esforçar para que eles não existam.

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Anônimo disse…
Que texto incrível, não apenas este, como o blog inteiro!
Camila disse…
Muito bem feito e verdadeiro o post Amauri!
Percebo que a cada segundo, afirmar a própria autonomia, fortalece-nos a criar mais ajustes para construir uma vida mais plena.
Atila Mendes disse…
Ótimo post, algumas perguntas me vieram ao lé-lo.
Partindo do princípio de que não é possível prescrever autonomia, já que a mesma por excelência implica em abrir mão das tutelas presentes na vida, então o que dizer de uma política que visa a produção de autonomia. Inviável? Impossível até de ser entendida, no mundo de hoje?
Como pode ser possível produzir algo no outro sem fazer qualquer tipo de prescrição e ao mesmo tempo não se restringir à um modelo exclusivamente informativo? Se faria, então, através do contágio? Enfim...