Despedida


É notória a objeção que muitos indivíduos têm diante do ato tão grandioso de despedir-se: talvez a despedida seja a coisa mais difícil de ser desejada porque a ideia comum que se tem da existência ainda está impregnada de concepções demasiado utilitárias, e de uma avaliação profundamente torpe dos pressupostos mais essenciais à criação. Mas, apesar disso, a despedida é, talvez, o ato mais importante para quem é impelido por uma grande inspiração: um pensamento maior surge naquele que percebe o movimento inexorável das mudanças que estão presentes em absolutamente tudo que existe. Para quem tem no corpo o sangue do artista, despedir-se das coisas que, temporariamente, fazem parte da sua existência é a condição vital para que a sublime obra de manter-se na transposição de limites não seja interrompida por uma leviandade qualquer que pode assolá-lo em certas circunstâncias, e que, por isso, torna-se perigosa – melhor que seja interrompida por uma causa muito mais nobre, que é a produção infinita da existência... A dor da despedida, por ser honesta, é infinitamente menor do que a dor do adoecimento que, inevitavelmente, surge quando estamos dominados pelo medo do desconhecido. Mas há tanta coisa para ser explorada nesse mundo desconhecido que, inclusive, nos habita! É, sem dúvida, um problema nosso saber quando não podemos mais esperar para irmos embora. Mas enquanto não partimos, um vento forte – que se repete incontáveis vezes durante a nossa existência – continua a nos empurrar para efetuarmos a despedida de tudo aquilo que tornou-se uma desarmonia – não há dúvida de que somos impulsionados, a todo momento, à musicalidade. Somente assim podemos nos unir aos que puderam despedir-se: eles tornam-se compreensíveis para nós porque experimentamos o que são as dores e as lágrimas de uma despedida, mas também aprendemos que a alegria e os sorrisos também estão implicados no ato de despedir-se... Nasce uma união dos que superaram o medo de se diferenciar. Apenas essa união é legítima, pois, afinal, é a própria vida que quer expandir-se que a legitima. Grande celebração dos que ousaram trocar de pele! E tal união é radicalmente distinta daquelas que são realizadas pelas instituições que foram erguidas por aqueles que não conseguem efetuar a despedida: é inevitável que sejam uniões artificiais, marcadas por um ínfimo traço de vida...

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Aforismo publicado no livro Singularidades Criadoras (2014), de Amauri Ferreira.

Comentários

Anônimo disse…
Gostei de seu escrito e pensei em uma frase È preciso construir vazios para que sejam habitados. grande é aquele que consegue trocar de pele e reconhece o momento próprio de trocá-la.
Anônimo disse…
Me lembrei de uma professora que dizia "o vazio é também o nome da possibilidade". Acho que as despedidas são grandes lápides, mas, principalmente, grandes nascedouros. Despedir-se de uma dor que já não é mais necessária e que nos ensinou uma gênese da alegria, de um calabouço de mesmidades, seguro e pobre para alçar um Maior de nós mesmos, mais colorido, mais amoroso, com certeza, são despedidas que nos redimensionam, nos alargam, nos renascem e reluzem, nos fazem maiores e mais nítidos para nós mesmos e para os outros.